A pintura, ou a arte da representação de imagens, mantém fortes conexões com sentidos
estéticos. A busca da beleza, por assim dizer. E, em torno dessa busca, surgem várias
possibilidades de interferência humana. Elas se dão através de linhas, cores e formas,
trabalhadas com características variadas e em estilos diversos, próprios da visão e da
sensibilidade de cada pintor/artista plástico.
Além disso, sabe-se que a pintura, em tempos remotos, significava vivenciar o mundo
através de uma visão mágica, aspecto que também pode se aproximar da estética. E, em tudo
isso, há a compreensão de que ela, historicamente, retratou o mundo com sua forma
expressiva e que – ainda nos tempos atuais – chama atenção das pessoas, seja em museus,
centros culturais ou, até mesmo, nas paredes de nossas casas. Ou seja, é entrar num ambiente
e ver algum quadro exposto, sentir qual o tema, como ele é retratado, que possibilidades de
beleza existem naquelas cores e sombras, que sensações desperta…
Diante do contexto inicial, se a pintura enquanto linguagem se aproximava da magia, é
ao mundo mágico da infância que esta crônica se inicia. Portanto: desde criança somos
despertados para a questão das cores, e elas têm formas, volumes e maneiras de
concretizarem-se no papel, numa tela, no ar, no chão… As cores enriquecem o mundo infantil;
elas excitam as crianças. Foi assim que me senti quando iniciei um curso de pintura ali pelos
sete anos, creio, na Escola Narizinho. O professor, de quem não lembro o nome, parecia saído
diretamente dos contos literários: era bonachão, gorducho, e usava um bigode daqueles bem
grandões, que invadem o queixo das pessoas. Simpático ao extremo, solicitava que eu pegasse
o pincel com carinho. Assim, dizia com poesia:
– Carlinhos, o pincel é seu amigo! Deixe ele pertinho de você…
O pincel era amigo mesmo. Tão companheiro que, nessa época e mesmo adiante, passei
a ter uma amizade extremamente gostosa e cada vez mais crescente com os primos dele, o
lápis e a caneta… E sem esquecer também os cadernos, livros, revistas em quadrinhos e jornais,
familiares por extensão!
Quanto ao material pintado naqueles tempos: melhor esquecer de comentar… De
qualquer forma, eram tentativas lúdicas de conhecer o mundo, fazê-lo semelhante ao meu
olhar e aos meus rabiscos…
Em casa também havia coleções de obras versando sobre o universo da pintura. Curioso
e explorador, em meio aos papos familiares eu abria esses livros na “página certa” e ficava
impressionado com o que via: casas, fazendas, morros, rios, cavalos, flores, pessoas de todas as idades, vasos, paisagens diferentes, anjos, demônios, cruzes, Cristos, e cores, muitas e muitas
cores!!!
Também, quando lia os nomes dos pintores, ficava impressionado: eram diferentes, em
nada lembrava os nomes dos primos e primas, a turma da época. Eu sentia dificuldades em
pronunciar: Van o que? Paul César? Rembranti? Parecia que o mundo era maior e mais vasto
que a casa em que eu morava…
Mas quando ia na residência de uma tia, querida Zélia, ficava “de cara” com um quadro –
de tamanho gigante – que retratava jangadeiros em seu ofício. A visão me era familiar: os
barquinhos e as pessoas da pintura estavam ali, na praia, e eu sempre os via quando ia tomar
água de coco e comer churrasquinho no Mucuripe nos fins de semana…
Em outra ocasião, ainda criança, conheci um pintor cearense na cidade de Jaguaribe. Os
comentários sobre ele, na fazenda em que estávamos – denominada Belas Artes, vejam só a
coerência no estilo! – diziam que havia chegado há pouco de Paris. Seu nome: Sérgio Pinheiro.
Estava sempre de branco, cabeleira vasta, e usava um grande bigode – assim como meu
primeiro mestre. Era de poucas palavras, e notei que tinha um olhar meio distante, como se
conversasse com o vento, com o tempo e com a paisagem – hoje percebo. Introspectivo, Sérgio
destoava das pessoas presentes. Com seu olhar perscrutador, tinha alma de artista a buscar no
exterior as matrizes do que necessitava para pintar, com certeza!
Tempos depois, adolescente, fui apresentado ao trabalho de Chico da Silva. Finalmente
um nome familiar! A produção desse artista envolvia a cultura cearense – eram galos, peixes,
borboletas, afora outros representantes da fauna e flora do Nordeste… Quanto às cores,
fragmentadas, davam a impressão de movimentos, como se os bichos não parassem quietos.
Chico era conhecido também por dois aspectos: por gostar de beber muito, e por ter sua arte
estudada na Europa, o que chamava atenção da imprensa local: eu já havia lido sobre ele nos
jornais cearenses… Um gênio da arte, e não apenas popular, Chico da Silva!
Adulto, conheci nas paragens musicais outro artista que me despertou curiosidade. Seu
nome: Zé Tarcísio. Homem viajado, simples e com uma vasta cultura, Zé era morador da Praia
de Iracema, cais, pouso e ateliê situado no quarteirão do centro Dragão do Mar. Em seu espaço
havia uma mostra de seu trabalho: pinturas, esculturas, instalações variadas. Notei que ele
tinha uma preocupação com a questão estética: parte de sua produção era iluminada, como
numa vitrine. Zé sabia, assim compreendo hoje, que as imagens que produzia tinham mais
força expressiva quando harmonizadas espacialmente. Tal aspecto sugere a noção de que as
emoções que sentimos ao ver/admirar uma pintura são mais afloradas se houver uma ordem
composicional no ambiente.
Enfim, o que surge dessas andanças que fiz ao conhecer o trabalho desses e de outros
artistas plásticos cearenses reside na observação de que são batalhadores por natureza,
resilientes mesmo. E talentosos! Alguns deles já fizeram a passagem – mas o trabalho continua
vivo, quente, interferente e atuando como fonte de estudo e material estético. Nesse sentido e
em todo o contexto, compreende-se que esses artistas coloriram o mundo a partir da própria
visão. E essa, com certeza, serviu para eles como instrumental de trabalho e de inserção; a
partir daí abarcando e significando a vontade de pintar como metáfora de viver.