A peste: afogados e sobreviventes

Filomeno Moraes

Afogados e sobreviventes” (“I sommersi e i salvati”, no original, e “os que sucumbem e os que se salvam”, na tradução portuguesa) é o título último livro de Primo Levi, sobrevivente do campo de extermínio de Auschwitz, título que se toma emprestado neste escrito.

Nos últimos dias, nos intervalos das erupções intermitentes do vulcão ativo no corpo, com confusões mentais quase bolsonarianas, e das rarefações do oxigênio terrestre, com afogamentos no seco, alinhavei alguns pedaços da memória remota e recente de audições, visões, leituras sobre pestes que antecederam a da Covid-19.

Revi o “Maravilhoso Boccaccio”, dos cineastas italianos Vittorio e Paolo Taviani, em que recompõem algumas das cem histórias – de amor, destino e ressurreição – do “Decamerão”, contextualizadas na quadra em que a “peste negra” assolou a cidade de Florença, no ano de 1348. A propósito, na “História de Florença”, Maquiavel anota que a cidade-estado estava em paz, quando ocorreu “a praga memorável, descrita com tanta eloquência por Giovanni Boccaccio, e pela qual Florença perdeu 96.000 almas”.

Outro fato que me veio à mente, visto na série televisiva “Wolf Hall”, produzida pela BBC, foi o relativo a Thomas Cromwell, ministro todo-poderoso de Henrique VIII, antes de cair em desgraça, e dínamo da reforma protestante na Inglaterra. Dessa feita, a peste denominou-se “doença inglesa do suor” (“sudor angicus”), que atacou o país de maneira dramática. Pai e marido dedicado, Cromwell saiu para trabalhar pela manhã, e, quando voltou no final da tarde, a mulher e as duas filhas estavam mortas.

A peste também teve impactos em pelo menos dois processos constituintes, o que realizou a Constituição de 1812, na Espanha, e o de que se originou a Constituição Federal de 1891, no Brasil. Na Espanha, a assembleia constituinte se reuniu em Cádis, fugindo das tropas napoleônicas e da febre amarela, doença de que alguns dos deputados constituintes vieram a morrer. No Brasil, a Constituinte de 1890/191 foi a mais apressada das que se teve, concluindo o seu trabalho em pouco mais de três meses, por conta de dois “temores”, a saber, o do autoritário Deodoro da Fonseca, chefe do Governo Provisório, e o da febre amarela.

Finalmente, num relato de um contemporâneo, o meu avô materno, tomei conhecimento, em idade ainda tenra, da peste da segunda da década do século XX, a gripe espanhola. No Brasil, entre outras pessoas, levou o presidente Rodrigues (revisão historiográfica recente diz diferente), reeleito para o mandato presidencial de 1918-1922. Muito depois também vim a saber que a gripe espanhola ceifou, aos 56 anos de idade e em pleno vigor intelectual e em fase extremamente produtiva, a Max Weber, um dos maiores pensadores da sociedade, da economia e da política. Diz o seu biógrafo Joachim Radkau que, em 4 de junho de 1920, Weber cancelou uma aula, devido a um resfriado. Dez dias mais tarde estava morto, pois, “o resfriado se converte em influenza e logo em pneumonia; finalmente falha o coração”.

Também, em jornais cearenses recentes, li rememorações das pestes que assolaram a cidade de Fortaleza, como a da varíola, no final do século XIX, que, num dia só, numa cidade de pouco mais de quarenta mil habitantes, ceifou a vida de mais de mil pessoas. Segundo a anotação de Rodolfo Teófilo, em Fortaleza “a peste invadiu tudo, desde a palhoça do retirante até o palácio do presidente da Província”.

Primo Levi no livro citado concluía que “não existem problemas que não possam ser resolvidos à volta de uma mesa, desde que haja boa vontade e confiança recíproca: ou até medo recíproco”. Parece que não é bem assim. Tanto nos Estados nacionais quanto na sociedade globalizada, há déficit de boa vontade e confiança e superávit de medo, o que possibilita muito mais a tendência ao estado de guerra contra de todos contra todos do que a convivência pacífica e altruísta, nos moldes do estado de natureza rousseauniano, ou da paz perpétua kantiana. Basta pensar o pensar o Brasil, em que manifestações extraordinárias de estupidez, obscurantismo e maldade políticas, com o avanço de um populismo essencialmente malsão, bloqueiam o consenso mínimo sobre o encaminhamento de medidas para minimizar os efeitos da Covid-19.

Primo Levi morreu em 1987, vítima de queda de uma escada (se acidental ou se voluntária, a discussão continua em aberto, talvez com mais pontos para a hipótese do suicídio). De qualquer maneira, alguém sublinhou com propriedade que, de fato, Primo Levi morrera ainda nos anos quarenta. Era, pois, um sobrevivente e, ao mesmo tempo, um afogado.

Não há dúvida de que, de qualquer modo, é preciso celebrar o dom da vida e afirmar a certeza de que este vale de lagrimas é o melhor dos mundos. Contudo, não se pode esquecer que os sobreviventes ficam marcados por carga de dor e luto, sofrimento e perda, que, em boa medida também, os torna sobreviventes que também se afogaram. Afinal, já acentuava o economista John Maynard Keynes que não é consolo razoável dizer que, depois da tempestade, virá a bonança. Na verdade, “durante a tempestade muitos morrem e a bonança não os ressuscita”, tudo “porque muito se destrói que a bonança não reconstrói; porque mesmo os que sobrevivem podem transportar longamente, ou para sempre, as cicatrizes que a tempestade causou”.

Há algumas observações correntes na conjuntura, umas puramente ingênuas, outras mais sofisticadas, de que o mundo sairá melhor depois da atual peste. Chega-se a dizer que viverá um capitalismo humanizado ou, no limite, o fim do capitalismo. Otimista de vontade, mas pessimista de inteligência, constato grosseiramente que, e ficando só em dois exemplos, depois da peste da varíola, no Ceará, as oligarquias recrudesceram; na esteira da gripe espanhola, emergiram o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha, e genéricos seus em outros países, na Europa e alhures. A evolução humana não se dá necessariamente no sentido do desenvolvimento. Talvez, sejam necessários engenho, arte e trabalho para que tal desenvolvimento se realize, o que só com lideranças com grandeza, instituições com qualidade e cidadãos educados e ativados democraticamente, se dará. Com a política democrática, enfim. Existem tais lideranças, instituições e cidadãos? A ver.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).

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Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).