A condução estava lotada quando ela finalmente conseguiu passar a catraca para o lado privilegiado de assentos disponíveis da topic que, no entanto, naquele horário, não havia nenhum. Bolsa pesada, livros na mão, 32 anos de magistério e ainda não tinha sobrado reais o suficiente pro investimento do carro. Posicionou-se, então, em frente a um rapaz jovem, distraído com seus fones de ouvido, a contemplar o engarrafamento através da janela, que de pronto a ignorou, afinal de contas, não é ensinada aos meninos de hoje a prudência da boa educação.
Tentando manter-se de pé, ela equilibrava o peso dos objetos que trazia em um só braço, enquanto o outro servia-lhe de âncora fixando-a prontamente ao veículo. Vez por outra, trocava os pesados blocos de livros e provas de braço, consequentemente, mudando também a mão de apoio que a impedia de cair nas duras curvas e freadas bruscas do inconsequente motorista. Seus gestos eram quase teatrais, mas o distraído rapaz, muito bem sentado à sua frente, continuava fingindo não notá-la.
Teria que ser mais incisiva.
Escândalo nunca foi de seu feitio, assim, aproveitou a próxima freada repentina para forçar um encontrão:
– Ôh meu filho, desculpe.
– Tudo bem.
Tudo bem?.
– Quer que eu segure suas coisas?
– Não. Obrigada.
Ela não precisava de migalhas. Sempre conquistou tudo sozinha. Mãe de três filhos, nunca faltou um prato de comida dentro de casa, todos terminaram os estudos na idade certa e aparecem rigorosamente todos os anos pra o jantar de Natal. Não foi fácil, por certo, dá para notar em seu semblante. Via sua face espelhada no reflexo da janela, os olhos fundos revelavam um cansaço que sobrepuja o peso da rotina ou daquele instante, as rugas e marcas no rosto já não a incomodavam tanto quanto em outras épocas. Deduzia-se uma mulher ferida na alma…
– Cabe mais ninguém não motorista!
A reunião de vozes militantes lastimava ainda mais o percurso da viagem, mesmo assim o motorista continua a abrir a porta. Nesse instante sobe no veículo uma senhorinha que mal conseguiu ficar de pé sem o apoio dos demais. Logo que a nota se aproximar, o rapaz, o mesmo, o desatento de olhar perdido, levanta-se oferecendo o seu assento para a idosa.
Por que a ela?
De fato… Olhando de fora, observando-a pelo reflexo na janela, a nossa exausta protagonista nem parece assim tão mais velha, sua tez, inclusive, transparece uma vitalidade congruente ao brilho dos seus olhos. Desde moça, sempre elogiaram seus olhos, os mais enamorados diziam ainda que seu charme estava escondido na desfaçatez do seu sorriso encabulado, que ainda está lá: Viu-se! Notou também que em seu colo os seios mantinham-se firmes e fartos, eram bonitos neste ou em qualquer outro decote, sabia. Além de tudo era inteligente e não lhe faltava nunca um comentário pertinente sobre o assunto que fosse. De fato ainda era uma mulher atraente, deveria soltar mais os cabelos e o fez. Próximo ao ponto de descida, deu outra examinada na deslumbrante mulher refletida no espelho da janela e não a abandonou mais.
Cherllany
Adorei esse conto! Tanto pela temática urbana e cotidiana, quanto pelo tema da complexidade humana que ele aborda. Lembrei um pouco de Clarisse, no desenvolvimento das questões internas à personagem, no fluxo como o pensamento é desencadeado e na mudança que uma situação externa comum pode trazer à vida.