A pandemia ajuda a discernir ou reforça os fundamentalismos?

*Grandes personalidades que marcaram a história carregam em si perguntas de base que lhes orientam sua caminhada humana na busca por respondê-las. E quando acontece de encontrarem respostas, estas permitem, em muitos casos, novas luzes para a humanidade em sua trilha existencial, uma espécie de tesouro comum.

Nestes dias de recolhimento em casa devido ao enfrentamento da pandemia covid-19, estamos tendo a possibilidade de estabelecer contatos pelas redes sociais com amigos e amigas de longas datas. Além de atualizarmos entre nós nossas realidades pessoais, enviamos e recebemos fotos, vídeos, artigos que consideramos valorosos para apreciação.

Ontem uma caríssima amiga de Caruaru – PE enviou-me uma preciosidade. Um vídeo com uma comunicação proferida por Chiara Lubich (1920-2008), cujo título é “Mostra-nos o Pai”. Chiara é fundadora do Movimento dos Focolares, com 16 doutorados “Honoris Causa” nos mais variados campos do conhecimento humano, como a economia, teologia, ciências sociais, comunicação social, psicologia e pedagogia. Ao assistir ao vídeo, chamou-me atenção algumas das perguntas de base no início de sua vida. Diz Chiara: “Percebia algumas contradições em mim e na Igreja que eu conhecia até então. Incongruências que talvez hoje vocês percebam em vocês e em certos ambientes cristãos. Eu me perguntava: por que a fé de quem se considera cristão se reduz, muitas vezes, em ir à missa aos domingos? Deus não é o Deus de todos os momentos e de todos os dias de nossa vida? Não é estranho que visitando um país cristão vemos pouca diferença daqueles países não cristãos?”. Com certeza, para quem busca uma coerência de vida dentro e fora de si, entre aquilo que se diz e aquilo que se pratica pessoalmente e socialmente, encontrar soluções para estas incongruências passa a ser um ponto central da sua existência.

Esta “questão lubichiana” conduziu-me a um tema central da ação pontifícia do Papa Francisco: o discernimento. Para ele, o discernimento é fundamental se se quiser viver coerentemente e autenticamente a vida cristã, na conquista do bem pessoal e social para todos. Francisco sublinha que sem o discernimento os atos humanos tornam-se casuísticos e fechados. Para evitar esta incongruência, é fundamental cuidar da formação integral humana a fim de identificar as armadilhas ideológicas em nossos ambientes, principalmente aquelas veiculadas nos meios de comunicação social, afinal a sutileza com que articulam as mensagens, elas nem sempre aparecem como preto no branco ou branco no preto, mas em variadas tonalidades de cinza. Portanto, é preciso aprender a discernir nestes tons de cinza.

O vocábulo discernimento deriva do verbo latino “discernere”, composto por “cernere” (ver claramente, distinguir), precedido de “dis” (entre); discernir significa “ver claramente entre”, ou seja, observar com a atenção da mente e do espírito, para escolher separando. O discernimento é um processo de conhecimento que se realiza por meio de uma observação vigilante e experimentação cuidadosa, a fim de nos orientar em nossas vidas, sempre marcadas pelo nosso limite e pelo não conhecimento. Discernimento é uma operação que compete a cada homem, a cada mulher, para viver com consciência, para ser responsável, isto é, poder responder inteligentemente aos desafios que se apresentam na construção do bem pessoal e social. Implica momentos de dúvidas, de cansaço para proceder uma escolha, de busca por orientações tanto na vida cotidiana como nas grandes decisões a serem tomadas.

Mas ontem também recebi o relato muito rico de uma amiga de Natal – RN que teve a oportunidade de acompanhar por 15 minutos seguidos o momento do jejum proposto por uma infinidade de pastores de igrejas evangélicas, com o pretexto de pedir a intercessão de Deus para livrar o Brasil do corona-vírus. O espanto dela deu-se em torno do mantra proferido pelos pastores gritando em línguas, conduzindo os fiéis a repetirem, pela internet: “Bolsonaro, Bolsonaro, Bolsonaro, as portas do inferno não irão prevalecer sobre você nem sobre o seu Governo”.

Samuel P. Huntington, assessor do Pentágono no governo W. Bush, em sua tese sobre o “choque das civilizações” faz uma observação de grande importância. Para o autor, no mundo contemporâneo a religião é uma força central, talvez a força central que motiva e mobiliza as pessoas. O que em última análise conta para as pessoas não é a ideologia política nem o interesse econômico; mas aquilo com que se identificam são as convicções religiosas, a família e o credo. É por estas coisas que elas combatem e até estão dispostas a dar a vida.

Por um dos lados do fundamentalismo cristão neopentencostal, a tese é afirmar que a sua Bíblia deve ser tomada ao pé da letra: cada vírgula é inspirada por Deus. E Deus não erra. Logo, a Bíblia não precisa ser interpretada nem contextualizada porque o Espírito Santo ilumina os crentes a compreenderem plenamente os textos bíblicos tais como são. Seus pastores têm claramente um projeto de poder religioso para depor a cristandade católica latino-americana em sua histórica hegemonia nas terras de maias, incas, astecas e tupis-guaranis.

Por outro lado, na vertente católica, o fundamentalismo recebe um nome particular de integrismo cujo objetivo é o de restaurar a ordem fundada na relação matrimonial entre o trono e o altar, o poder político com o poder clerical. Visa-se a uma integração de todos os elementos da sociedade e da história sob a hegemonia do espiritual representado e interpretado pelo corpo hierárquico da Igreja Católica, encabeçado pelo Papa, como afirma o documento “Dominus Jesus”, de 2000.
O fundamentalismo religioso apresenta-se como o meta-discurso na base da ação política dos governos conservadores e de extrema-direita muito bem articulados mundialmente em sua ânsia de hegemonia. Para tanto precisam atacar a racionalidade científica, como as potências emergentes do século XXI, China, Rússia e o BRICS. E a covid-19 transitando nesse cenário. Ontem Trump afirmou não querer que outros países recebam máscaras sanitárias. “America first!”.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .