Das ciências sociais advém uma compreensão sobre religião como sendo um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições nos humanos, buscando atingir o âmago da consciência – as almas – para assim conduzi-las com efetividade segundo seus objetivos.
Trata-se de uma “ferramenta” inventada em um determinado tempo e lugar, por certas pessoas, para impor seus propósitos a outras, revelando, consequentemente, seu caráter político. Uma invenção conceitual, politicamente motivada, para classificar o mundo entre aqueles que são e aqueles que não-são como nós, aqueles que são a favor de nós e aqueles que são contra nós.
Religião compreende, portanto, uma dimensão institucional e organizada, do campo religioso, por meio de espaços, tempos, ritos, símbolos, doutrinas, liturgias, autoridades, práticas, tradições, comunidades, mitos, artes, literatura, premiações, ameaças e condenações. Desses elementos, dois são fundamentais: a Tradição e a Comunidade, por meio das quais liga-se e religa-se um grupamento de pessoas, baseadas numa determinada fé, com o objetivo de união entre si e com o Mistério da Transcendência.
A fé, em seu sentido estrito, refere-se a uma suposta palavra de Deus revelada, implicando como consequência aos crentes uma acolhida inquestionável e inabalável de uma interpelação transcendente, mediada pela revelação, pela autocomunicação de Deus na história, atestada por assim ditas testemunhas escolhidas.
Pelo menos quatro dimensões compõem uma fé religiosa. A dimensão intelectual – Fides – por meio da qual o crente assume como verdade as proposições de uma determinada crença, dispensando-a de comprovação científica ou factual. Fiducia, que se refere ao compromisso emocional de estar ligado à Fonte mediante as indicações de determinada doutrina religiosa. Há ainda a Fidelitas, a lealdade em colocar em prática os códigos estabelecidos. E por fim, a dimensão comunitária – Comunitas – congregando os crentes na vivência material do discurso de um determinado sistema religioso.
Assim, não se trata apenas de devoção. Mas de instituições sociais, econômicas e políticas no interior das quais as biografias individuais e coletivas são vividas. Toda fé apresenta-se comprometida com algo. Importa saber com que causas e em que medida se compromete. Neste sentido é emblemática a citação de Tomás de Aquino (1225-1274) ao expressar que “certos povos vivem num grau de barbárie que só podem ser regidos pela vara. É lícito guerrear contra os pagãos se eles ofendem a fé cristã com a idolatria, que é a blasfêmia das blasfêmias”.
As eleições municipais de 2024 apresentaram um novo capítulo da disputa do mercado da fé, com forte presença do fundamentalismo religioso na vida política brasileira. Pablo Marçal (PRTB – SP), coach messiânico, de extrema-direita e autoproclamado cristão, surgiu como promessa de turbinar uma espécie de bolosonarismo 2.0, apoiado abertamente pela mídia do grande capital, que lhe abriu as portas a todos os debates por ela promovidos, mesmo sem o partido do referido candidato possuir a representatividade mínima na Câmara Federal que lhe garantisse assento nestes eventos, conforme dispõe a Lei eleitoral.
De olho nas almas sedentas das promessas e garantias de Deus, Marçal fundou em 2021 o Quartel General do Reino (QGR), um movimento religioso híbrido que combina elementos de religião e autoajuda com forte referência à sua imagem. Mesmo tendo Jesus Cristo como o líder espiritual do seu Quartel, Marçal apresenta-se como uma figura central do seu movimento. Em sua estrutura religiosa não há dízimo, não há templos, e os crentes têm acesso a Deus sem a necessidade da intermediação e da obediência a pastores ou pastoras. O coach messiânico, ao contrário, cobra esporadicamente pedágios ao oferecer pacotes religiosos: cursos por meio dos quais ele promete destravar a vida de seus milhões de seguidores digitais, combinando conteúdos de autoajuda, desenvolvimento pessoal e espiritualidade, apresentando-se como forte ameaça à estrutura neopentencostal enraizada no Brasil, com seus inúmeros templos, dízimos e pastores milionários.
Em entrevista concedida à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de São Paulo, no último dia 08 de outubro, o pastor Silas Malafaia sentiu o golpe da emergência do Quartel de Marçal e partiu para o ataque. Malafaia considera Pablo uma pessoa muito inteligente e carismática, muito fora da curva. Conhecedor da linguagem evangélica (“dos seus códigos”, como diria Umberto Eco no maravilhoso romance O Nome da Rosa), ao contrário de Bolsonaro que não sabe nada de evangelho. Por fim, para Malafaia, Marçal sabe usar as redes digitais como ninguém, acarretando como consequência a admiração de boa parte do povo evangélico, que segundo Malafaia, “está agindo por paixão”.
Em seu destempero notório, Malafaia deixa expor, na referida entrevista a Bergamo, uma espécie de desespero diante da novidade. “Não concordamos com calúnia, nem difamação. O povo de Deus quer ser guiado por redes sociais? Eu fui levantado como uma voz profética. O povo de Deus não é guiado por homens, é guiado pela Palavra e não pela paixão”, berrou Malafaia.
A indagação vem à tona: o que acontecerá se esse povo, desses pastores e pastoras neopentecostais, por conta da influência de Marçal, deixar de frequentar seus templos, seus cultos, deixar de seguir suas doutrinas e determinações pastorais e, principalmente, deixar de ofertar sistematicamente o seu dízimo fiel? Não é à toa que Malafaia, detectando a ameaça, partiu para o ataque com toda munição contra esse seu novo inimigo.