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“A neurologia do belo”

Imagine você trabalhando o dia inteiro em alguma função que te permita, de certa forma, um repouso contínuo. Algo muito comum nos tempos atuais, visto que passamos praticamente o dia todo repousando apenas da cintura para baixo. Sentados. De acordo com pesquisas de 2014, as pessoas têm passado entre 50 a 70% do seu dia sentadas, exercendo suas atividades à frente de um computador. Uma falta de movimento não por tédio ou preguiça, mas por pura necessidade.

Pensemos agora no trabalhador de chão de fábrica. No porteiro. No simpático pedreiro. No motorista de táxi, de ônibus e até na atendente da padaria. Alguns deles se movem com mais frequência que um “trabalhador de desktop”, certamente. Apesar de funções distintas, lanço agora uma pequena indagação: o que esses profissionais que se mexem um pouco mais podem ter em comum com quem trabalha ao computador o dia inteiro?

Dica valiosa: um singelo objeto que os acompanha quase sempre.

Mais dicas: esse objeto portátil percorre longos caminhos por muito tempo durante o dia: vai da casa ao trabalho, às vezes acompanha na hora do almoço e geralmente se faz mais presente naqueles momentos de tensão quando um projeto “engancha” na sua mente, quando você não se concentra de jeito nenhum em seus afazeres – como é o meu caso (redator publicitário faz ginástica com o cérebro e com a paciência). Aliás, tem até quem leve o tal objeto ao banheiro, aproveitando também os momentos de intimidade que ele proporciona num conveniente espaço onde – realmente – a intimidade impera. Alguns viciados em “selfies” e no Snapchat dirão o contrário, mas não vem ao caso!

Agora ficou mais fácil, não? É um simples objeto tão utilizado por tanta gente em seu cotidiano. Ele não distingue rico nem pobre, doutor ou flanelinha, vendedor ou advogado. Todo mundo usa e gosta, quase sempre pertinho do rosto, carinhosa e inseparavelmente. E repete. E sente um prazer variado, mas inegavelmente intenso. Sempre ali com todos, quase que como uma parte do corpo, é bastante flexível. Ah, e para atender a todos os gostos, geralmente é preto ou branco, mas vem em espessuras e tamanhos diferentes.

Pensou besteira? Não pense mais: um inofensivo par de fones de ouvido é a nossa resposta!

O que essa pequena constatação traz à tona é um fato tão banal quanto nossa recorrente indiferença a aspectos mais profundos sobre o assunto que vamos abordar aqui: música. Todo mundo ouve música durante a maior parte do seu dia. Mas por que precisamos dela? Entre respostas mais simples (para não querer se meter a ser muito científico ou extenso), ela é uma arte acessível, móvel (fones de ouvido!) e que agrada aos mais variados gostos.

Para ser mais romântico e prático, ela alivia tensões da alma e até do corpo, nos diverte, ajuda a concentração no trabalho, distrai, diverte. Mas já paramos pra pensar um pouco mais profundamente o quanto ela é realmente importante?

Que atire a primeira pedra (ou um par de fones quebrados) aquele que não tem a música da sua vida. Aquela que lembra um antigo amor, uma fase difícil, um amigo distante, um parente engraçado, um episódio feliz da infância. Aquela cuja intensidade faz querer sair batucando por aí, ou cuja melancolia e “sofrência” faça o mais imponente CEO querer se afogar num litro de cachaça. O som especial que desperta também cheiros, memórias, toques e apresenta ao seu cérebro uma estranha sinestesia. Aquela melodia única e insistente que invade a casa, se mistura na bebida e se espalha pelo ar, abrindo portas e invadindo sem licença as roupas, vasos e ressonando por todos os espaços. Sim, música é isso: uma invasão completa de nossos espaços, sentidos e privacidade. E sabe o que é melhor? Somos excelentes anfitriões para com ela.

Em agosto passado, o mundo perdeu o Dr. Oliver Sacks, renomado neurologista e psiquiatra que estudou como poucos o cérebro humano. Dentre suas inúmeras contribuições para a ciência, o Dr. Sacks também lançava seus livros ao público geral numa linguagem bastante acessível, permitindo a leitores não habituados com o idioma científico entender e se cativar com histórias impressionantes sobre nosso órgão mais belo e complexo. Dentre seus livros está “Alucinações musicais: relatos sobre a música e o cérebro”, o qual adquiri há alguns anos. A obra revela que a música também era uma grande paixão sua, relatando casos clínicos impressionantes de incidentes, distúrbios ou síndromes relacionados à musicalidade e estudados ao longo dos anos pelo autor.

Logo no prefácio, ele pontua que “ouvir música não é apenas algo auditivo e emocional, é também motor. […] Acompanhamos o ritmo da música, involuntariamente, mesmo se não estivermos prestando atenção a ela conscientemente, e nosso rosto e postura espelham a ‘narrativa’ da melodia e os pensamentos e sentimentos que ela provoca”. Trazendo para a vida real, isso é extremamente observável: quem nunca se viu de repente tocando bateria invisível, ou mandando ver num belo solo de airguitar com sua música favorita?

No exemplo de um caso retirado do livro, o Dr. Sacks conta logo de cara a fascinante história de Tony Cicoria, um cirurgião numa pequena cidade do estado de Nova York. Em algum dia de 1994, ele foi a um telefone público ligar para sua mãe. Uma tempestade se aproximava e Tony logo achou que estava bem abrigado na cabine telefônica. Em poucos instantes, a chuva se aproxima e uma descarga elétrica o atinge em cheio. Após uma experiência de quase morte, Tony se recupera e, em duas semanas, está de volta ao trabalho. Exceto por uma coisa: um desejo quase que incessante de ouvir música de piano. Nos meses seguintes, o cirurgião desenvolveu uma habilidade que jamais imaginava para si: aprender música clássica praticamente sozinho (desde jovem, só gostava mais de rock). Conseguiu um piano, encomendou partituras e até tomou aulas. E relatava sentir uma “música incessante” dentro de sua cabeça. Procurou ajuda psiquiátrica, neurológica e até espiritual – chegou a acreditar que estava “possuído”. Por vezes acordava de madrugada para tocar piano e não parava até o amanhecer.

Após muitos exames e conversas com o próprio Dr. Sacks, foi constatado que a descarga elétrica afetou setores de seu cérebro diretamente responsáveis pela cognição e linguagem musical. Tony Cicoria despertou um raro estado de “musicofilia”, uma tendência extraordinária à musicalidade. Seu cérebro (durante a experiência de quase morte pela descarga elétrica) ganhou uma nova configuração nos lobos temporais. Contrariando toda a lógica de possíveis danos, ele estava saudável e ganhou um “dom” artístico.

Aceite: a música e o cérebro são amantes insaciáveis, baby. E tenho a impressão de que esse amor com trilha sonora marcante nasceu bem antes do festival de Woodstock – yeah!

Claro que casos como o de Tony Cicoria não são vistos com tanta frequência. Mas mesmo em níveis não acadêmicos é possível notar o enorme bem que a música faz à nossa saúde física e mental. E o mais legal é que você nem precisa ser atingido por um raio ou quase morrer para sentir isso. Basta apenas se deixar sentir. Não só com a música radiofônica, popular, mas com a música instrumental, com a música cantada, com o pulso e timbre psicodélico de uma batida techno/dance, com a voracidade de um heavy metal. Seja em qual estilo for sempre existe aquela canção que faz o peito pulsar e a endorfina (substância do prazer) ser liberada aos turros em nosso organismo. E quem nunca sentiu isso que atire o primeiro vinil rachado. Poderíamos citar mais centenas de casos científicos do Dr. Sacks sobre o poder da música em nosso sistema nervoso. Mas as linhas são poucas e a verdade é única: todos nós, inevitavelmente, cantamos com o corpo e sentimos com o espírito. O que pretendo traçar aqui, em textos futuros, é um bom diálogo sobre o poder dos sons e dessa arte tão sublime e transformadora de nossos corpos e nossas vidas. Além de trazer informações, comentários de notícias sobre música, também quero praticar um dos maiores prazeres que sinto em relação à música: indicar canções e artistas aos meus amigos. Ao longo dos anos – e por ter tocado guitarra em algumas bandas locais, colecionando uma penca de amigos músicos -, acumulei um repertório interessante e bastante eclético. Para minha surpresa, minha paixão pelo rock n’ roll permaneceu intacta, apesar de meu gosto (felizmente) viajar bastante por estilos dos mais variados: do samba ao pop/rock, da música clássica ao heavy metal – e em muitas outras obras onde estes estilos se encontram.

Compartilhar isso é tão gratificante e recompensador pra mim quanto ouvir música e ter todas as boas sensações que ela provoca. Ou tão bom quanto subir num palco e passar isso às pessoas – com o cuidado de não desafinar e levar tomate na cara…

Espero, nesta coluna, ajudar a atingir talvez não só o cérebro, mas também aquela bomba rítmica que pulsa sincopada e incansavelmente no peito e na vida de cada um. Pois nunca é demais reforçar o construto sonoro que cada um possui na eterna partitura de sua própria história.

Agora, pegue seu par de fones de ouvido e, como dizia a grande voz de Barry White, let the music play!

Referências:
SACKS, Oliver. “Alucinações musicais: relatos sobre a música e o cérebro” (p. 11). São Paulo: Companhia das Letras, 2007

 

Sérgio Costa

Bacharel em Ciências Sociais pela UFC e em Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) pela Fanor/DeVry. Publicitário por profissão, empresário por coragem e guitarrista por atrevimento. Apaixonado incurável por música, literatura, boas cervejas, boas conversas, viagens inesquecíveis e grandes ideias. Escreve quinzenalmente sobre música para a coluna Notas Promissoras do portal Segunda Opinião.

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Bacharel em Ciências Sociais pela UFC e em Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) pela Fanor/DeVry. Publicitário por profissão, empresário por coragem e guitarrista por atrevimento. Apaixonado incurável por música, literatura, boas cervejas, boas conversas, viagens inesquecíveis e grandes ideias. Escreve quinzenalmente sobre música para a coluna Notas Promissoras do portal Segunda Opinião.