A neta e o mar

O amor às netas e aos netos é contemplativo. observamos sua desenvoltura, acompanhamos seus passos a certo distanciamento, aprendendo com sua inventividade, diferentemente do amor aos filhos e filhas com os quais mantemo-nos em proximidade operativa constante. Dormem conosco em nossos leitos, mesmo se sabemos que no dia seguinte estaremos com nossa coluna vertebral literalmente combalida pelos chutes recebidos durante a madrugada movimentada pelos seus giros. Ou quando, com muita energia, varam noite adentro brincando sem parar: na véspera do São João passado, as três piruetaram na cama o tempo todo cantando “Olha pro céu, meu amor”.

Netos olham para os avós com mais liberdade e curiosidade. Lembro-me de uma infinidade de momentos vividos com minha avó paterna, carrego-os comigo como precioso tesouro. Afinal, a experiência cotidiana no interior de grupos humanos – casal, família, comunidade – enriquece-nos e libera-nos para além de nós mesmos. Na família temos a ocasião de vivenciarmos diversas dimensões que nos constituem como humanos. A família é uma comunidade de cuidados, em razão das necessidades que se prolongam por toda a vida. O amor nasce e cresce com esse cuidado, em uma realidade partilhada e séria. Sem tais realidades de intersubjetividades verdadeiras, as relações humanas correm riscos de tornarem-se patológicas.

Duas imagens a registrar. Sua casa era aberta a todos. Estava sempre em movimento, recebendo amigas e parentes. Mas uma marca indelével na memória dava-se no início da noite quando uma meninada invadia seu terraço para assistir à televisão, novidade para todos nós naqueles anos 1960 recifenses. Essa meninada era paupérrima, moradora de uma ocupação de um sítio abandonado, no final de nossa rua. E ela os acolhia diariamente em sua casa com muita simplicidade e alegria.

A segunda imagem, quando eu criança, chamava-me para narrar a vida dos personagens cristãos que conseguiram a proeza da santificação. Eu me maravilhava com os relatos sobre aquelas pessoas concretas e reais, capazes de feitos grandiosos e imprevistos por amor ao outro. Francisco de Bernadone, desafiando a mentalidade de então, por meio da vivência da pobreza evangélica, reuniu em torno a si uma juventude que ansiava por um novo sentido de vida, fundando uma obra que perdura até os dias de hoje, tendo iniciado inclusive as primeiras experiências de microcrédito para as vítimas da opulência opressora de sua época. João Bosco, por amor aos meninos de rua, produziu a Pedagogia da Presença. João Maria Vianney, por meio da extrema generosidade modificou a vida da cidade de Ars. Agostinho, com seu coração inquieto, teve a coragem de redirecionar sua existência dedicando-a a buscar a verdade na filosofia e teologia. Graças à minha avó, essas personagens marcaram o meu imaginário infantil.

Ontem, ao mar, mais uma visão contemplativa. Na tela de fundo, o encontro das cores no fim do horizonte: mar e céu bem juntinhos. A trilha sonora composta pela sinfonia da forte brisa de agosto, incansável em seu assopro, harmonizando-se com um marulho calmo de uma maré rasante a convidar-nos ao mergulho em sua misteriosa fluidez remexente. Que sonoridade! E sob os pés, cachos de seixos na areia sob o tapete de algas marinhas. Nada atravancava aquela fotografia extasiante: um retiro do tempo, imersão no espaço natural. Baita saudade!

De repente, completa o quadro, a imagem de minha neta velejando nos ombros do pai, de um lado a outro, como se a vida fosse apenas aquele momento. Uma amizade profunda entre os dois, a conversa, o riso e as brincadeiras correm soltos. Uma confiança plena da criança menina no homem  adulto; ambos envoltos pelo mar. O mar, a criança, o adulto. Mas se o tempo passa, o que permanece?

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .