A literatura – enquanto linguagem formadora e artística – nasce praticamente com o ser humano. Isso ocorre em virtude das primeiras leituras que fazemos na vida, quando, muitas das vezes, nossas mães nos apresentam aqueles livrinhos – e aqui o diminutivo é sinal de carinho e de aconchego ao suporte – cheios de cor, de desenhos e de historietas maravilhosas, as quais nos fazem sonhar e interferir no mundo com nossa imaginação infantil.
Lembro bem essa época: minha mãe, Ana Maria Perdigão, me incentivava a ter um contato estreito e criativo com as palavras, falava-me sobre o nascimento do ovo, inventava novos nomes para a Dona Galinha, comentava sobre os atributos dos pintinhos – despertando meu olhar para o material narrado. Depois sugeria, envolvente e com muita simpatia, que eu fizesse o contorno das letras botando o dedinho; foi assim que ela fundou o meu abecedário. Fazia mais: denominava as letras, aproximava uma das outras, fazendo-as amigas no papel e em torno da gente, da nossa relação mãe-filho. Assim foi formada minha família: pai, mãe, irmãos e letras. Pouco tempo após chegaria a arte, que iria me arrebatar e me levar para as salas de aula e para os palcos. E com as letras presentes…
A seguir, após essas sessões lúdicas, carinhosas e representativas dos meus contatos iniciais com a leitura e a escrita, fui à escola entrar no mundo acadêmico. Seu nome: Instituto Educacional de Alencar, a chamada Escolinha, dirigida pela querida Nildes Alencar e que, soube depois, era irmã do Frei Tito, um frade dominicano cearense perseguido pelo governo militar de Médici.
A Escolinha era ao mesmo tempo um espaço amoroso e instigante. Eu adorava ir pra aula! Foi lá que descobri a arte, ou a manifestação dela, inclusive através da literatura. Aconteceu que, no 1º Ano do – atual – Ensino Fundamental, estudantes iriam apresentar uma peça teatral versando sobre a história de Pinóquio, personagem carismático do escritor italiano Carlo Collodi.
Toda a turma se alvoroçou, querendo participar. Eles precisariam de quatro alunos, que iriam ler pequenos trechos do livro, ensaiar e, assim, performatizar num palquinho improvisado na escola. Eu fui decidido: “quero participar”. De alguma forma meu discurso convenceu a professora, que me deu o papel de Gepeto, pai do protagonista que dialetiza e evoluciona o texto literário, fazendo com que o boneco de madeira possa ser transformado.
Hoje compreendo: naquele momento fui tocado pela possibilidade de realizar leituras interferentes – era necessário o meu olhar enquanto leitor e ator, que utilizaria o texto num momento específico, com uma função social – ser apresentado numa peça, e num processo de selecionar informações – uma das técnicas leitoras, que envolve apreender o necessário e esquecer informes meramente acessórios.
Nesse contexto, tive que ensaiar pequenos trechos do livro. E desse modo fiz. Viajei na literatura de Collodi, buscando fazer o meu melhor naquele momento. E como me emocionei! E como os familiares se emocionaram! Tanto que, por um tempo, fui estrela na minha casa! Estrela de uma peça só, de meia dúzia de palavras, mas extremamente realizado.
A seguir a literatura continuou sendo um prazer. Assim é que, anos depois, os livros solicitados na disciplina de português eram lidos gostosamente – como O Escaravelho do Diabo e alguns de José de Alencar. Entretanto, Dom Casmurro, de Machado, foi um terror para toda a sala. O bruxo do Cosme Velho é um escritor genial (como comprovei depois, já adulto), mas com uma literatura densa demais para jovens interessados em outras coisas na vida…
E para quem enxerga o mundo num viés artístico, os tempos adolescentes são tempos, sobretudo, poéticos. Isso ocorreu comigo também. Assim, vitaminado pelas experiências nas ruas, pelas leituras de Drummond, de Bandeira, de Patativa, de Milton Dias, todos eles presentes na casa dos meus pais, passei a nutrir o desejo de traduzir em palavras o que via através dos olhos da alma. Surgia neste cronista a vontade da escrita.
Poetar passou a ser um exercício diário, inclusive noturno, e em vários lugares – no banheiro, no quarto, na sala, na escola, na vida… Eu experimentava as palavras! Elas iam! Elas vinham! Passei a estudar dicionários, tentando encontrar vocábulos novos, significados diversos. Isso mexia comigo, tornando-se um jogo literário: eu perdia a namorada, mas não perdia a chance de colocar meu amor no papel. A bateria também estava presente: eu cantava os poemas, experimentando possibilidades sonoras e inventando ritmos. Na escola fui ficando conhecido por conta dos escritos: as meninas chegavam e pediam para ler. Por vezes, copiavam meus textos! Por um tempo foi assim, eu vivi minha poesia, com ela sempre companheira…
A ligação esteve tão forte que, impulsionado pela força da linguagem, durante um tempo acordava intencionalmente de madrugada para escrever. Fazia isso em ato contínuo, como uma espécie de estética surrealista: acordar e escrever poesia com o que viesse na cabeça. Não havia luz nenhuma. Mas havia a noite, o silêncio, o sonho, um lápis, uma caneta, um papel e o amor pela escrita.
Em seguida, o toque no coração deste cronista foi conhecer Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Leitor já de Paulo Freire e de suas conexões com uma educação política e de forte viés social, eu me identifiquei com o personagem Fabiano, vaqueiro-analfabeto-dependente de tudo e de todos, até do clima e de seu patrão inescrupuloso. Fiquei altamente incomodado com esse personagem, o protagonista da obra, distópico em sua essência. O desespero de Fabiano e de sua família mexeu muito comigo. Vi nele o arquétipo do povo nordestino: pessoas que batalham de lua a lua e que teimam em crer no amanhã.
A ligação que tive com essa narrativa me levou ao filme homônimo, talvez o maior representante do trabalho de Nelson Pereira dos Santos. Um clássico do Cinema Novo, Vidas Secas foi premiado por onde passou, sendo considerado por muitos como uma cópia praticamente fiel do livro, aspecto que concordo, inclusive apresentando algumas passagens da vida de Graciliano, já presentes na obra.
Em outro momento, amadurecido, o universo da literatura adensou em mim a vontade de registrar meu trabalho no formato livresco. E foi o que fiz: no final de 2010 lancei o livro “Fragmentos: poemas e ensaios”, o qual reúne uma produção de mais de três décadas. O desejo era delimitar meu campo de atuação artística, e agregar valor ao meu trabalho como arte-educador, músico e professor de português.
Mais uma vez, as reminiscências da infância/adolescência se fizeram presentes: o título foi a última coisa a ser decidida, e surgiu em forma de lembrança de uma conversa entre minha mãe e uma prima, que iria lançar uma obra. Eu devia ter uns 11 anos na época. Assim, Emília – a prima, perguntada sobre o nome, afirmou: “Fragmentos”; achei a palavra tão bonita que disse para mim mesmo, “se algum dia for lançar um livro este será o seu nome”! Detalhe: eu não sabia na ocasião o significado da palavra, mas a achei linda…
Há também o aspecto de que a literatura mexe tanto com as pessoas que há muitas delas no Ceará pesquisando seus percursos, características intrínsecas e como se concretiza no meio social. Esse é o caso de dois pesquisadores do universo literário dentro e fora da academia: Katiusha de Moraes e Carlos Dantas, dois escritores – com uma forte poética – que vivenciam o mundo da leitura e da escrita de uma forma visceral, na alma. Neste texto, minha homenagem vai para eles: Katiusha é uma das figuras mais lindas e doces que já conheci, é mesmo uma fábrica de asas (título de um dos seus livros!). Dantas, por sua vez, é um amigo antigo e batalhador do universo do cordel, além de ser um escritor com muita sensibilidade.
E para finalizar: nessa história toda está minha participação como arte-educador. Assumo: enxergo a sala de aula como sala de arte! Mas não só! Assim é que, juntando a riqueza da ciência e a potência emocional da arte, tenho participado de inúmeras apresentações, ocupando espaços variados, formatando projetos com linguagens diferentes, dando aulas em centros culturais, faculdades, escolas, bienais, universidades e até mesmo em presídio – que, inclusive, já recebeu minha bateria, minhas poesias e o meu tocar! Assim, sigo com a forte crença de que educar este país – inclusive literariamente – é a melhor maneira de fazê-lo mais humano, democrático e gentil com as pessoas. Tarefa difícil, mas quem disse que seria fácil?