A LÍNGUA DOS OUTROS – por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

“Acho que aquele que conta histórias deveria ter sempre alguém para contá-las, e somente assim poder contá-las a si mesmo.” (Umberto Eco, em BAUDOLINO).

– O ônibus ’stá no prego!

Nascido na província neerlandesa de Holanda do Sul, em Dordrecht, cidade de localização estratégica, onde o rio Merwede bifurca-se em Novo e Velho Maas, com portos históricos, monumentos vários e atmosfera saudável, ele, primogênito de família bem estruturada social e economicamente, além de fervorosamente católica, já na adolescência – corpo atlético: estatura de jogador de basquete, inteligência rara e invejável poder de concentração, além de louvável capacidade de leitura e interpretação do mundo –, sentiu-se arrebatado, como um Saulo modernoso (“seguir” em vez de “não perseguir”), pelo convite do Altíssimo e, sem titubeios ou hesitação, renunciou aos prazeres mundanos (muito poucos, pouquíssimos mesmo, experimentados, haja vista uma existência tranquila, recatada, de quase total recolhimento doméstico, em convivência cotidiana e respeitosa com as cinco irmãs – ele, a última folha da verde rama), entregando-se plenamente à convocação divina para a vida clerical e de serviço à messe.

Cumpriu com desvelo, diligência e reconhecida operosidade todo o ritual formativo, incluindo os votos de estabilidade, pobreza, castidade e obediência, condições essenciais impostas pela Congregação da Missão, ordenando-se, em ato marcado pela simplicidade e pela presença de familiares, como padre vicentino ou lazarista, ou seja, pertencente à ordem secular cujos membros vivem e trabalham em comunidade. A opção pelos pobres brotou, ganhou robustez e floresceu em solo fértil e sempre muito bem cuidado: os aconselhamentos maternos, eivados de religiosidade, generosidade, desapego ao terreno e fraternidade. Duas passagens bíblicas margearam os vários caminhos por ele incansavelmente percorridos na árdua batalha cotidiana cujo propósito basilar era oferecer algum conforto aos irmãos necessitados, marginalizados socioeconomicamente, as quais sempre o mantinham – mesmo que a distância se fizesse por demais longa – bem próximo da mãe amorosa, fervorosa, que não se cansava de repeti-las ante o olhar atento do filho em pleno processo de encaminhamento para a vida missionária. Ora, quando citava Mateus, ressaltava estas palavras que Cristo direcionara aos discípulos: “Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”. E isso ele, de pronto, dispôs-se a vivenciar. Ora, quando mencionava Marcos, enfatizava o conselho dado por Jesus ao homem bom e de muitas posses que pretendia alcançar a vida eterna, embora tenha se revelado incapaz para o enfrentamento de uma empreitada de tamanha envergadura: “Uma só coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”. E disso também nada lhe custou a prática, tão decidido estava.

– O ônibus ’stá no prego!

Com o aval da família, refúgio em que sempre encontrava apoio incondicional e estímulo recorrente, logo integrou o primeiro projeto de vivência missionária que lhe ofereceram os seus superiores, vindo aqui – em terras tropicais, onde se fazia perceptível a olho nu o contraponto entre o luxo ostensivo e a extrema miséria – compor a província brasileira da missão vicentina, já merecedora de reconhecimentos.

Antes, ainda em solo pátrio – em grande parte abaixo do nível do mar; daí neerlandês, de Neerlândia ou País Baixo (Países Baixos, após incorporação de terras insulares no mar das Antilhas) –, manteve os primeiros contatos com a língua portuguesa, num formato hoje conhecido como instrumental; em outros termos, num modelo que visa possibilitar ao estrangeiro uma sobrevida em terras alheias até que consiga atingir o conhecimento funcional da língua dos outros.

No Brasil, a sua reconhecida capacidade de assimilação do novo, com reforço do desejo imperturbável de tornar-se útil no projeto que abraçara, fê-lo levar alguma vantagem em relação aos demais companheiros de jornada. Logo adaptou-se ao padrão linguístico brasileiro; logo compreendeu a sua gramática; mas sofreu um pouco com a fonética, enfrentando dificuldades quanto ao ajuste do aparelho fonador, notadamente em situações que demandavam a nasalização. O léxico, de origens várias (de nativos, colonizadores, aventureiros e escravos), também dele exigiu um pouco mais de esforço, embora o sacrifício maior – o que o fez passar por vexames, por incompreensões, sem olvidar as noites passadas insone sob o furor de falares que teimavam em não se subjugar ao seu entendimento – quem lhe impôs foram as variações sociolinguísticas, além dos regionalismos e das expressões populares invariavelmente construídas sobre alicerces metafóricos. E tudo isso se agudizava em face de a sua ação missionária pendular entre as camadas sociais favorecidas (o clássico) e os grupos sociais periféricos, marginalizados (o vulgar).

– Seu padre, o ônibus ’stá no prego!

Alguns anos já passados, numa conversa de sacristia por mim provocada, após missa por ele celebrada em capela de cidadezinha do interior, construída basicamente com recursos doados pela família distante, quando, já desprovido dos paramentos, o que revelou estar vestido numa batina de cor preta e carente de bons tratos, eu fiz questão de reverenciá-lo, pessoalmente, pela demonstração do mais pleno domínio da língua portuguesa padrão ao ler o evangelho segundo João, que apresenta a fala de Jesus na 2ª pessoa do plural (”vós”, “vos”), e substituir oralmente toda a estrutura verbal – flexão, concordância e regência – pela de 3ª do plural (“vocês”, “lhes”, “os”, “as”), sem cometer qualquer afronta à língua que agora também lhe pertencia, de fato e por méritos.

“Naquele dia pedireis/pedirão em meu nome, e não vos/lhes digo que vou pedir ao Pai por vós/vocês, pois o próprio Pai vos/os ama, porque vós/vocês me amastes/amaram e acreditastes/acreditaram que eu vim da parte de Deus.” (João 16, 26-27, com as respectivas intervenções do padre neobrasileiro).

O jovem auxiliar de pároco, responsável religioso e ecônomo do patronato das irmãzinhas vicentinas, sediado em edificação que, cingindo a capela, compunha com ela um conjunto arquitetônico cuja beleza se assentava mais propriamente no amor aos pobres, a quem oferecia muito mais que o simples abrigo, e cuja fonte de investimento tinha por origem a província neerlandesa de Holanda do Sul, o filho de Dordrecht, deixando transparecer o saudável prazer da conquista, do sentir-se em casa, confessou quão árduo foi todo o processo de compreensão dos múltiplos falares do povo brasileiro, muito mais complexo que o de adaptação ao clima, aos costumes, à alimentação e à cultura, especialmente nas regiões onde lhe foi dado empreender a sua missão evangelizadora. Com um leve sorriso nos lábios, um olhar de aprazimento por trás das lentes dos óculos de armação grosseira, ele citou algumas expressões das muitas que, conforme me confidenciou, causaram-lhe estranheza e provocaram custoso desvendamento: “Atirar pedra na lua” (enlouquecer); “Bater a caçuleta” (morrer); “Botar boneco” (criar caso, confusão); “Cão chupando manga” (pessoa feia demais); “Capar o gato” (fugir, se mandar); “Entregar a rapadura” (desistir, renunciar);  “Fazer das tripas coração” (entregar-se a um propósito); “Fazer hora com a cara [de alguém]” (fazer gozação); “Roer a corda” (desistir); “Só o buraco e a catinga” (desmilinguido); “Tirar água do joelho” (urinar, mijar).

Como bom agente de coleta do IBGE, um quase profissional de entrevistas, indaguei-o sobre a experiência que, para ele, acabou se tornando a mais marcante. De pronto, respondeu-me: “Estar um ônibus no prego”. Contou-me, então, a seguinte história:

– Participava de um seminário na Capital. Era hóspede do vigário da paróquia de Nossa Senhora dos Remédios, na área central do quarteirão em que, numa das esquinas, funcionava o Myra e López, hospital psiquiátrico, e, na outra, equipamentos funcionais da Universidade Federal do Ceará, cuja reitoria ocupava um prédio de linhas arquitetônicas que revelavam identidade e imponência, erigido bem à frente, no outro lado da avenida Universitária.

“Todas as manhãs, bem cedinho, apanhava o ônibus com destino ao centro da cidade, fazendo a pé o percurso até o Seminário da Prainha. Era uma boa e saudável caminhada que me proporcionava o enriquecedor contato com pessoas dos mais variados perfis. E eu ia me ajustando aos falares daquele povo alegre que tão bem sabia dissimular os seus problemas, as dificuldades cotidianamente enfrentadas.

“Num certo dia, eu estava com mais umas duas ou três pessoas no ponto à espera do coletivo que teimava em não vir. Alguém já demonstrava inquietação ante o atraso para o seu trabalho de comerciário – Será que o patrão iria acreditar nele? Permaneci calmo, tranquilo, porquanto ainda me restava algum tempo para a primeira atividade matutina. Quando, de repente, um jovem senhor, ao passar por nós pedalando uma bicicleta, advertiu-me: – ‘Seu padre, o ônibus ’stá no prego!’.

“Logo, duas imagens saltaram da memória para o centro do meu processo interpretativo: um ônibus, enorme; e um prego, pequeno e fino. Impossível. Surrealismo ao extremo. Um ônibus dentro de um prego. Talvez ele quisera dizer que um prego se enfiara no pneu do ônibus, causando estragos; daí, o atraso. Não. O rapaz foi bem claro: ‘o ônibus está no prego!’. Tornei isso um problema meu. Tenho de buscar a devida solução. Nada comentei com ninguém. Mas percebi, embora algum tempo depois, como as outras pessoas que comigo estavam no ponto de ônibus entenderam a mensagem do ciclista.

“À noite, antes de dormir, consultei o velho dicionário que já se tornara companheiro de jornadas. Do substantivo ‘prego’ segui para o verbo ‘pregar’. Aí, as coisas começaram a ficar mais claras. A ação indicada pelo verbo tanto podia ser ‘fixar, a marteladas, um prego em algum objeto’, quanto ‘difundir a palavra do Senhor’ – ou seja, a pregação, que fazia parte do meu ofício – ou ainda ‘interromper qualquer tarefa por cansaço ou exaustão’. Pronto. Assim se dava a solução da questão. Veja bem, amigo, a gente relacionava a ‘exaustão’ do homem, que o fazia parar, à ‘pane’ do ônibus, que também o fazia parar. E, sem maiores pretensões, a não ser a de comunicar um fato de forma diversa, popular, tornava equivalentes as frases ‘O homem pregou, cansou’ e ‘O ônibus está no prego, quebrou’. Percebeu?”.

– Sim, percebi, padre. Fantástico. A sua explanação se faz merecedora de aplausos. E isso me leva a reconhecer que a língua portuguesa, ou melhor, os multifacetados falares brasileiros, às vezes, também me parecem ser a língua dos outros.

“Por mais talentoso que seja um poeta, um romancista, um dramaturgo, um jornalista no exercício de sua arte ou ofício, isso não lhe garante o conhecimento minucioso e específico do funcionamento de toda a complexidade da língua, da qual é simplesmente um usuário competente (como, aliás, todos os falantes nativos da língua).” [Marcos Bagno, em DRAMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA – Tradição gramatical, mídia e exclusão social].

 

 

Sobre o autor:

Compartilhe este artigo:

A LÍNGUA DOS OUTROS – por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Uma resposta

  1. ERRATA:
    Onde se lê “ele, a última folha da verde rama”, leia-se “ele, a primeira folha da verde rama”.