A Intuição da Ilha

Assim, quase que de uma sentada, é que li aquele que me parece o mais belo dos livros publicados este ano. Veio em boa hora, como a espalhar poesia, embora escrito em prosa, sobre a data que, efetivamente, precisa ser festejada, pelo que representou e continuará representando para os países de língua portuguesa (e para o mundo) o homenageado. Ele, ninguém mais ninguém menos que José Saramago — que contaria, no próximo dia 18, cem anos —, primeiro e único escritor do vernáculo a receber o Nobel de Literatura, em 1998. O livro, intitulado “A Intuição da Ilha”, um arrebatador registro dos dias de José Saramago nas ilhas Canárias, assinado por Pilar Del Río, companheira do escritor até o falecimento dele, ocorrido em 2010.

Embora nascido em Portugal e a Portugal tendo dedicado o que fez de mais expressivo numa vida já por si extremamente rica, pois que de Azinhaga, sua terra, extraiu muito da matéria-prima de que faria uma das mais belas literaturas de todos os tempos, a importância do arquipélago canário era tanta para o escritor que ele próprio se dizia “português de Lanzarote”, como por vezes se pode ver nos seus diários, não sem razão conhecidos como “Cadernos de Lanzarote”. Foram 18 anos, desde que lá se estabeleceu em protesto à censura imposta a um de seus romances clássicos, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, pelo governo de Cavaco Silva, em 24 de abril de 1992.

Escrito em capítulos curtos, que, sem prejuízo, podem ser lidos aleatoriamente, “A Intuição da Ilha” é um testemunho vertiginoso e tocante de uma mulher que foi, segundo o próprio escritor, um dos dois acontecimentos mais importantes de sua vida. Mas, na contramão do que é comum em relatos do gênero, em que a vida doméstica é o substrato dominante da narrativa, o livro de Pilar Del Río constitui uma novidade por si só merecedora de destaque: a narrativa passa ao largo de qualquer sentimentalismo vulgar, tão ao gosto de um certo memorialismo piegas e lamuriento não raro presente nas prateleiras do gênero, e encanta pela isenção do olhar, muito embora delicado e intencionalmente respeitoso, como atestam aqui e ali as referências textuais em terceira pessoa.

Ler “Intuição da Ilha”, por isso, é como que, se por um golpe da sorte, pudéssemos participar diretamente de um passado que parece pertencer, exclusivamente, a José Saramago, posto que, já o disse, Del Río se mantém à distância, conduzindo com sutileza e refinado estilo os passos do leitor Casa adentro (é este o topos dominante da narrativa), não obstante seja a própria convivência dos dois e dos numerosos amigos, entre risos e iguarias, a interface do que existe de mais significativo, pulsante, vivo e eterno nesse livro quase inclassificável.

Como foi dito, o escritor português contaria cem anos neste mês. Nasceu em 1922, filho de uma família pobre do Ribatejo. Antes de tornar-se conhecido nos quatro cantos do mundo, por sua obra densa, profunda, esteticamente inovadora, José Saramago exerceu diversas profissões: foi serralheiro, desenhista, servidor público, editor e jornalista. Todas, naturalmente, atividades dignas, às quais se referiu sempre com um respeito algo cerimonioso, o que, mais ainda, se reflete nas ideias políticas que defendeu por toda a vida com um entusiasmo e uma convicção inarredáveis. Suas entrevistas, tanto supostamente quanto suas obras, são ouvidas, vistas e revistas mundo afora. Em todas elas, a palavra elegante, o ritmo cadenciado, a expressão entre serena e professoral — instrumentos retóricos com que semeava a defesa intransigente dos valores fundamentais da existência humana.

Hoje, confesso, sentei-me à frente do computador para a escrever sobre a obra de José Saramago, dizer palavras sobre seu estilo, sua narrativa entrecortada de vozes, num exercício de polifonia que, no mais das vezes, causa ao leitor desatento certo estranhamento, e, não raro, leva-o a não seguir adiante. Meu jeito incorrigível de dividir com o outro a experiência de um milagre, o sortilégio de viver por inteiro a beleza que lateja, viva, incontornável, salvadora do mundo, na literatura de José Saramago.

Mas o espaço é curto. Voltarei aos seus livros depois.

“Alder, suas recomendações literárias têm muita força, caro amigo, além de beleza. Meu abraço.” Osvaldo Euclides

“Eita, Álder! Que texto lindo e arrebatador! Quando e se um dia eu chegar a ser gente grande, quero escrever assim! E quanto a A Intuição da ilha, já está na minha estante de desejos. A ser degustado, naturalmente. Obrigada!”

“Lembro-me de ter seguido uma série, cuidadoso documentário para a tv, sobre Pilar e Saramago em Lanzarote. Fotos impressionantes da ilha e do casal. Irei agora à caça da sua recomendação. Felicidade a minha que disponho à mão de sugestões às quais recorro com alegria. Abs.”  Paulo Elpídio.

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

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Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica