Juan Miguel Díaz, filósofo espanhol, escreveu que “a glória é uma locomotiva que sempre tarda. E, quando chega, é fatal; já não dela carecemos”. ¹ A história da literatura ofertar-nos um cardápio excessivo de injustiçados, pois cada era sofre seu particular número de gênios literários soterrados na barbárie do esquecimento. Quantos grandes poetas foram esquecidos! E quantos poetas medíocres estão hoje laureados! A glória chega tarde para Ângelo Lobo – e ele já não carece dela – o maior poeta cearense do século XX. Sombra anônima em seu estado natal, nada ou quase nada, aqui no Brasil, se conhece de sua vasta e brilhante obra. Mestre visionário do NeoAbsurdismo – pós-vanguarda literária que revoluciona as letras francesas contemporâneas, cujo manifesto lança em Paris em 1974, mesmo ano do lançamento de O Anti-Rimbaud, seu segundo livro de poemas, monumental obra cujos efeitos são determinantes para a Geração Decadentista, alcunha que marcou o grupo de poetas parisienses neoabsurdistas.
Benoit-Blanchard, poeta francês vencedor do Prêmio De Musset de Poesia, constatou que:
“Ângelo Lobo migra as fissuras da palavra. É maior que Barthes, pois não se reduz à análise semiológica; vai para dentro do signo, que é fala, que a fala é virtude destrutivista. Consumir a carne, consumir Deus e a malevolência do céu, falar para dentro e para os poros. É esta a poesia de Ângelo Lobo”.²
No jornal Magazine Liberté, de 8 maio de 1982, o filósofo Jacques Bretaine, importante teórico do Desvairismo Ontológico, comentando acerca do livro Os Homens sem Mar, prosa-poética de Ângelo Lobo, expõe que:
“No desvelamento da palavra advém o ser-do-mundo, poético e ontológico. Não o ser-do-mundo na facticidade, como pressupõe Heidegger. O ser-do-mundo da poética de Ângelo Lobo não é revelado pela palavra (morada do ser), mas no exercício de seu silêncio. É, pois, o que está por trás da revelação que revela-se revelado em potência de existir. Ângelo Lobo escreve ocultando-se na revelação da palavra”.
Significativa também é a alusão a obra de Ângelo Lobo no livro O Combate das Palavras, do polêmico e combativo teórico da literatura Antoine-Henri Villemon. Diz ele:
“A literatura após Auschwitz parece ter-se imergida na plasticidade de si mesma. Os escritores, fadados no ‘sentimento burguês’, lançam seus livros envergonhados, maculados. Até mesmo grandes obras de nosso tempo, como A Grafia da Resistência, de Michel Chard e os Órfãos, de Ângelo Lobo, delas pouco tiramos além do cinismo de serem apenas boas obras literárias, porém inúteis diante do holocausto e suas consequências humanas e teleológicas”.³
Quem é este poeta que povoa revistas, jornais, livros e figura no imaginário cultural europeu como uma espécie de mestre obscuro? Quem é este Diógenes da poesia no século XX reconhecido em geografias tão distantes e anônimo no Brasil e no Ceará? Ângelo Lobo nasceu em novembro de 1934, em Mangue Seco, no Ceará. Iniciou seus estudos sob a tutela do beato Francisco Rebouças, o Chico Milagroso. Em 1948 a família Lobo transfere-se para Fortaleza. Ângelo é matriculado no antigo Liceu do Ceará. Em 1950 trabalha na Tipografia Horizonte e publica seus primeiros poemas no Jornal O Estado. Aqui, impõe-se uma lacuna. O próximo registro de Ângelo Lobo será em 1962, já em Paris. Não se sabe o que motivou sua partida para a Europa, nem os meios pelos quais ele o fez e, muito menos, como viveu seus primeiros anos na capital francesa. O fato é que, em 1962, seu nome figura na revista Le Bataille, revista de poesia vanguardista contemporânea. É também o primeiro registro dos seus poemas que irão compor Piano Sem Deus, sua obra primogênita. O impacto da poesia loboniana nos meios culturais franceses foi imediato; ao menos para um grupo de novos poetas ávidos por uma causa. Na era da semiologia e dos estudos linguísticos, um poeta que surge escrevendo que “o cu é mais profundo que Deus”, “as mãos / dentro da boca / modelam o grito”, “a palavra é a superfície da queda”, “o primeiro erro de Deus foi a palavra / o segundo o homem / o homem que fala extingue Deus / sem o silêncio, Deus suicida-se”. Ora, em uma Europa atravessada pelo fantasma da segunda grande guerra, pela sombra inviolável de Auschwitz, pelo fracasso estrutural dos cientificismos e humanismos iluministas, o que pode dizer o poeta? As palavras são poucas e incapazes. Diante do fracasso da civilização, o que dizer? É neste contexto que podemos compreender a afirmação de Amelie Francour:
“Necessário uma voz-outra poética que nos dissesse à face o quanto absurdo é escrever hoje. E ele nos disse, por ser outro, outro-nosso, mas outro, que veio dos trópicos, onde ainda é possível se crer nos homens. Só existe um poeta capaz de dizer a Europa hoje, é Ângelo Lobo, das terras do Brasil”. 4
Onde e em que circunstâncias poderia imergir o NeoAbsurdismo? Nas primeiras linhas do Manifesto Absurdista, lemos que: “É chegado a hora em que o NÃO seja um pedaço de Deus dentro do caos (…) hora em que os homens devem dar às mãos contra o lobo e a máquina, a guerra e a poesia”. 5 Para uma geração niilista, cuja mudez ontológica a levou ao pastiche pós-moderno, o aparecimento de uma voz lúcida, não circunscrita aos messianismos de qualquer ordem, é rizoma fértil para esses “desabrigados de esperanças e sentido”. Ângelo Lobo converte-se, na década de 70, no mentor de um grupo de jovens escritores, artistas e filósofos marcados pelas consequências de uma sociedade traumatizada pela falência dos princípios fundamentais da utopia humanista europeia. Mas as vanguardas, na mesma proporção que surgem, abalam e descontroem, também desaparecem. Nos anos 90, o nome de Ângelo Lobo é jogado no ostracismo cultural. A geração de escritores e teóricos surgidas nos anos 90 já não discutem mais a queda do Ocidente, o niilismo do pós-guerra, o fim do Homem, as incertezas da História. A obra de Ângelo Lobo é maior que o panfletismo das vanguardas, mas quem ousou diferenciá-la? Hermenêutica equivocada, atrelá-lo somente ao NeoAbsurdismo, sem antes considerar a totalidade de sua poesia. O mentor da geração decadentista absurdista desaparece. Muda-se para Portugal, e cala-se. E cale-se também os seus discípulos e detratores. É como se, de repente, Ângelo Lobo fosse apenas um sonho efêmero (ou pesadelo?) pressagiado nas franjas cultas das letras europeias do pós-guerra. Não sabemos, ainda, se voltou alguma vez ao Brasil. Não sabemos se buscou publicar seus textos no Ceará. De constatável apenas o silêncio absurdo, no Ceará e no Brasil, em torno de seu nome. A glória, rainha austera e cínica, julgou-o não mais digno de seus guizos e espelhos, e o condena ao anonimato reincidente. Ângelo Lobo morreu no dia 24 de janeiro de 2019, em seu pequeno apartamento na cidade de Évora, na região do Alentejo, Portugal. Segundo o depoimento de José Esteves Leopoldo, cineasta português, amigo íntimo de Ângelo Lobo, além dos dois livros inéditos, ele deixou um velho porta-retratos com uma fotografia da orla de Fortaleza datada de 1959.
P.S: O Instituto de Letras Canônicas de Lisboa divulgou alguns poemas inéditos na imprensa. Aqui, reproduzimos dois poemas inéditos de Ângelo Lobo. Segue-os:
1
Sobre as hordas e o caos,
Refaz-se o homem.
Sobre a austeridade dos relógios,
Desconstrói o tempo.
Avante! Pelas colinas
Rumam sombras e esperanças.
Avante! Que o novo homem
Há de nascer. Dentro da pedra
E de Deus.
2
Sofri a cólera do meu tempo,
A desvirtude dos vendavais.
Com rumor e algodão, eu cresci
Por trás da palavra. Posso renascer,
Como a fênix de fogo
Que inventa o mar.
NOTAS:
- Días, Juan Miguel. Estudos sobre a ontologia da queda. Rio de Janeiro: Clássico Edições, 1993.
- Benoit-Blanchard. NeoAbsurdismo: poesia e subversão. São Paulo: Acrônico, 2012.
- Villemon, Antoine-Henri. O Combate das Palavras. São Paulo: Aboio, 1994.
- Francour, Amelie. Literatura e decadência – estudos sobre a queda do Ocidente. São Paulo: Mirante, 1990.
- Manifest Absurdist, Paris, 1974 – excertos traduzidos pelo autor deste artigo
AS VALSAS SEM FOGO
Impossível não sofrer
estas valsas sem fogo,
e ficar acordado dentro
do sonho dos insones.
Impossível eu partir de mim,
e colher o colo das miragens,
a roupa e o apelo dos dentes.
Deixei passar os pássaros,
deixei passar invioláveis oceanos,
deixei meu corpo ferido
de madrugada. Impossível
o amor dos loucos, e na noite
dos enforcados eu quis gritar,
mas da boca não se anunciava
a espuma e a liberdade.
Impossível não sofrer
estas janelas e suas grades.
E as xícaras e as cadeiras
vazias. Sobre a mesa há bananas,
papéis riscados e moscas.
Não chove, mas há frio.
Tenho fome e pressinto
que as chaves se perderam.
Não é domingo, mas Deus
esqueceu-se de nós.
Dentro da alma, repenso paisagens
de Bosch. Considero a verdade
das coisas perdidas, mas não ouso
levantar-me. Considero também
as dívidas, a soma das quedas,
o preço da carne e do perdão.
Mas não ouso levantar-me.
Mesmo se quisesse, meus pés
e minhas mãos são resignações.
Hoje não posso escrever poema.
Hoje não posso masturbar-me.
Hoje não posso escrever cartas
contra os tiranos. Não posso apunhalar
as paredes e o amor. Minhas mãos
são resignações e não alcanço
o revólver e a bruma.
Não alcanço os céus intactos,
o mar itinerante das horas.
Sofro como o poeta sem um cão.
Na remissão da boca, eu me entrego.
Hoje, neste dia exato de cinza, não
conseguirei matar-me. Acresce que a vida
é uma sentença que não posso escapar.
Os dias e os felinos estão lá fora.
A mulher também. As orquídeas, os desejos
e os penhascos não sabem perdoar.
Impossível não odiar
os poetas sem nudez,
e todas as palavras
que o vulcão não devora.