A FORMA DOCE E TERNA DE DAR E RECEBER AMOR

Pesquisa divulgada recentemente aponta: O brasileiro está se casando mais. Curioso: O outro resultado da pesquisa, infelizmente, desaponta: O brasileiro está se separando mais. O número de separações legais supera hoje todas as estatísticas. Pena. Se o casamento é uma instituição falida, como querem alguns (e as pesquisas parecem indicar essa tendência), por que tantos homens e tantas mulheres ainda buscam na vida a dois o que definem como felicidade? O que ainda leva as pessoas a tentar viver juntas, dividir camas e lençóis, como se o que chamam de felicidade fosse, necessariamente, um tipo de cumplicidade?

Levantamentos indicam que é cada vez maior o contingente de pessoas que moram sós — e conseguem estar de bem com a vida. Nos supermercados e afins, cresce a oferta de produtos para solteiros, o que facilita o cotidiano daqueles em cuja mesa um só talher é bastante. Mas, a pesquisa quantifica, aumenta o número daqueles que acreditam na utopia do improvável, “até que a morte os separe”.

Não é sem razão que o tema do amor frustrado povoa o imaginário das pessoas, notadamente dos artistas. O cancioneiro popular é pródigo em cantar essa dor, quase sempre insuportável. “A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida”, dizia Vinicius de Moraes, ele mesmo exemplo clássico de amores desfeitos e buscas incansáveis. Consta que casou nove vezes, poeta das paixões, como se tornaria conhecido.

Há mesmo, entre os grandes compositores, quem parece ter se especializado em cantar o sofrimento de quem perde o objeto amado, e não preciso falar aqui de Lupicínio, que seria um tipo de redundância. É do próprio Vinicius, é de Chico Buarque (perfeição!), de Roberto Carlos, de Dolores Duran, de Evaldo e Jair Amorim, de Cartola, de Herivelto Martins, para citar apenas alguns emblemáticos da canção brasileira, que tomaram nas mãos a missão de eternizar as desilusões e insucessos do relacionamento e a amargura que advém disso.

Na literatura, é inimaginável a quantidade de livros, bons ou ruins, que exploram o tema, não raro grandes clássicos da poesia e da prosa de ficção. No cinema, então, essa dura experiência humana está registrada em cenas inesquecíveis. Quem haverá de esquecer “Casablanca” e a mais bela fala de amor de que se tem notícia: “Nós sempre teremos Paris”.

A propósito, na busca de um “mote” para a crônica de hoje, larguei os dados da pesquisa e fui à estante ao encontro de algo que fizesse contraponto, que ilustrasse o eixo discursivo do que pretendia escrever. Caiu-me nas mãos esta pérola de Dalton Trevisan: “Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa da esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano,a imagem de relance no espelho.

Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles iam embora e eu ficava só, sem o perdão de sua presença e todas as aflições do dia, como última luz na varanda.

E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero da salada — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcharam. Não tenho botão na camisa, calço meia furada. Que fim levou o saca-rolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor”.

Machista, afeito a exaltar o exercício da domesticidade? Talvez sim, talvez não. Ponto de vista. Quem disse que fazer certas coisas atribuídas à Senhora é desmerecê-la, ignorar que está em igualdade de condições? Algum dia, em algum lugar, haverá mulheres a sentir falta do homem para afastar o móvel, repor a cortina, trocar o pneu, desfazer o varal… Quem sabe fazer a farofa com torresmo que só ele faz.

Não são papeis que definem o lugar de fala, nem a vocação para fazer bem o que há de ser feito, tampouco o nível de independência, a igualdade de direitos, o respeito e consideração recíprocos. O que diz da correlação de forças no casamento, no namoro, na convivência a dois, são os pequenos gestos, a forma de tratar e reconhecer direitos e deveres (se existem deveres no amor). O politicamente correto, o que dá a dimensão do verdadeiro encontro, a medida da bela cumplicidade, não são discursos e estandartes, mas a forma doce e terna de dar e receber amor.

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica