As pessoas importam. Somos amadas por uns e indiferentes a outros. Vistas por uns e invisíveis a outros. Isso é uma dinâmica do universo.
Tecer considerações sobre o comportamento humano em busca do autoconhecimento é um desafio contínuo. Isso inclui o nosso próprio comportamento, é claro. A modernidade nos apresenta novas situações e formas de relacionamentos com tamanha velocidade, que nos falta tempo à apropriação. Algumas vezes, nos enganamos com a interpretação dos entusiasmos nossos e dos outros.
Ao que me parece nessa era digital, os sentimentos têm a mesma reprodutibilidade da informação. Me ocorre lembrar Walter Benjamin quando ele afirma que “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que um acontecimento apenas imaginado é sem limites, porque é uma chave para tudo que veio antes e depois”. Isso me remete ao comportamento no meio virtual; a rapidez com que as coisas acontecem, são e deixam de ser, muitas vezes nos furta a possibilidade de capturar a verdadeira significância dos sentimentos. De tão líquidos, eles escorrem por entre os dedos. Podem até evaporar, mas dificilmente atingem o estado sólido.
A era digital encurta distâncias e afasta pessoas quando se escondem por trás do touch screen e se evitam, ao ponto de duvidarmos se são mesmo humanos ou robôs. Há um fenômeno comportamental quando o encontro no barzinho, cinema ou coreto da praça é substituído pela impessoalidade de uma tela de celular. Mais uma constatação do que um julgamento, porque encontros são sempre encontros.
Em alguma medida “somos responsáveis por aquilo que cativamos”, embora eu não me considere uma autêntica exuperyana e explico: não atribuo a ninguém a responsabilidade por me cativar, mas me sinto responsável por quem cativo.
Posso dizer que a partir do meu lugar de aprendiz, observo a performance das relações e uma convicção me alcança: gosto de pessoas. Gosto de gostar de pessoas, sempre e cada vez de mais pessoas, criar novos laços e manter vínculos de uma vida inteira. Gosto de deixar-me cativar. Sou eu a responsável por isso e peço desculpas a Exupéry, mas chamar essa responsabilidade é a prova de que acredito na ternura dos afetos descomprometidos.
Depende do olhar e da atitude se enxergamos uma jibóia, um elefante ou um chapéu, uma mesma situação nos permite várias camadas de leitura. Em se tratando de afeto, o fato é que em algum momento, ele foi real, embora efêmero. Vida que segue. Cativamos, nos deixamos cativar, somos cativados, seja a partir de um encontro presencial ou virtual. Vi amizades sendo firmadas nesses dois cenários.
Ouso contrariar mais uma vez o clássico, porque acho que o essencial é visível aos olhos, recolhemos o que interessa e descartamos o que não agrega. Isso é sobrevivência. Em tempos de desesperança, tal como o contexto de guerra no qual “O pequeno príncipe” foi escrito, que bons sentimentos desprovidos de qualquer apego ou interesse sejam a resistência, e que o contrário deles não encontre eco nos corações das pessoas de bem.
Essa sinergia na formação de laços atravessa inevitavelmente, a nossa capacidade de escuta, quando nos esvaziamos de qualquer juízo de valor para acolhermos o outro. Alberto Caeiro disse: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.” Aqui, entendo o silêncio como um viés do comportamento que nos prepara para o autoencontro e para o encontro com o outro.
Há uma continuidade quando conjugamos os verbos escutar e enxergar. Posso escutar pessoas tão-somente para me presentificar em suas vidas, silenciar ou contar suas histórias, mas se eu decido contá-las devo estar inteira ali. Atenta aos detalhes, aos signos, à simetria, às cores, enxergar a alma e deixá-las felizes com a minha narrativa. Nesse momento, alguém se torna protagonista de uma escrita. Uma história se materializa diante de nós. O invisível torna-se visível.
Escutamos um desconhecido, um amigo, aquele cantor consagrado, aquele escritor ou entidade surrealista que nos sopra algo no ouvido e nos causa sensações, estranhezas e inquietudes. Escutamos o artista anônimo e observamos como ele comunica a sua voz e como lida com o banquinho e o violão que compõem o cenário. Algumas vezes assumem o protagonismo, noutras atuam como coadjuvantes.
Cada dia despertamos com a textura de um amanhecer, com uma nova percepção das coisas e com uma disposição natural e renovada para interferirmos de forma ativa ou nem tanto, em como a vida acontece.
A opção por comportamentos e atitudes é um movimento individual que somente a nós compete, mas que tem ressonância em nossa vida e na do outro, e define a marca que deixaremos impressa no universo com nossa passagem. Embora alguns comportamentos causem estranheza de tão insólitos, se anunciam bons sentimentos, a mim me parecem legítimos.
Jaime Soares
Mais uma bela crónica.
Há tempo para os afectos, para os silêncios, para as cumplicidades. As pessoas na nossa sociedade, nas nossas sociedades, é que pensam que não há. É necessário acordar de um torpor em que as máquinas nos teimam em colocar. Isso é que é estranho, não querer acordar.
Antes de acordar é necessário imaginar muita coisa. E nunca deixar de imaginar. Os comportamentos de inspiração e vigor.
Robot não é humano.
Boa escrita, Íris.📗😍❤