Venho discutindo este tema, creio, desde a graduação, quando fui reprovado em Teoria da Literatura I, porque ousei contraditar a professora numa questão subjetiva sobre eu-lírico, ao analisar “O meu guri”, de Chico Buarque. Eu lhe disse, então, que havia outra possibilidade, não colocada ali, de percepção do eu-lírico, a percepção do poeta. Ela não sabia que eu escrevia poemas e, algum tempo depois, figuraria ao lado de outros escritores, meus professores e seus colegas do Curso de Letras, em antologias, jornais, revistas.
Parti para a sala de aula, como professor, ainda estudante, e vi que no Ensino Fundamental e Médio montaram uma grade e puseram pedaços esquartejados de textos literários dentro. Por mais que eu me esforçasse para ensinar literatura, ela era apenas para quem tinha o hábito de ler, hábito esse adquirido fora da escola. E os alunos não aprendiam o que não poderia ser ensinado daquela forma, vendo a literatura aos pedaços. Quando ingressei na Universidade, como professor, vi que era pouco diferente. Mas eu estava num Curso de Letras! Era difícil convencer aos colegas que poderia se trabalhar literatura através da união entre texto e história, texto e psicologia, texto e sociologia, texto e filosofia, e não apenas escandir versos ou enquadrar a prosa nas correntes das teorias, invariavelmente, daquela forma, excludentes. E parti para a negação. Veio o vírus Bakhtin e eu fui contaminado e me curei quando li sobre Bakhtin. Não por causa dos bakhtinianos, estes eram tão complicados e tão delirantes que eu preferi entender o russo pelo russo. E assim foi com outros teóricos, com historiadores, com filósofos, dentro da minha precariedade de leitura. A esta altura, já havia lido o Candido, o Bosi, o Sodré, o Afrânio, o Romero, o Carvalho, o Castello, o Azevedo, o Holanda, etc.
E fui elegendo meu cânone de acordo com as minhas preferências, não com as do Antonio Candido; com o meu olhar, não com o de Afrânio Coutinho; com a minha desconfiança, não com a do Nélson Werneck Sodré; montando um panorama de acordo com as minhas escolhas, não com as do Alfredo Bosi. Evidente que eu não negava por negar, mas alternava autores e refazia percursos que poderiam ser oferecidos. E comecei a testar isso na prática, quando ministrava palestras em outras universidades. Certa vez, no Crato, uma professora questionou: quem é você para discordar do Roberto Schwartz? Eu disse que era o professor Gildemar, da UFPB (na época), hoje UFCG. E talvez tenha sido indelicado ao perguntar quem era ela, que não conseguia tirar as amaras que lhe aprisionavam na periferia. Outra vez, em Campina Grande, num congresso, contestei um professor da UFRJ. Rebati sua imprecisão, desconstruí seu argumento e pedi para que lesse os não lidos e ignorados por ele, dentro daquele assunto, que me era familiar. Mais duas vezes, para encerrar esse depoimento. Em Minas, na Puc, participava eu de uma mesa redonda sobre intertextualidade. Fui o último a falar, depois das autoridades. E, coincidiu que eu havia feito um trabalho sobre a hipertextualidade n’O gato de botas, de Perrault. Havia rastreado o texto do conto infantil ao cordel, usando as modulações da intertextualidade, ao modo de Gérard Genette, que estavam fresquinhas na memória. E eu dispunha para pesquisa de um acervo de cordel dos maiores no mundo, no Programa de Pesquisa em Literatura Popular – PPLP da UFPB, em João Pessoa. Ali, na mesa, único nordestino no congresso, eu era visto como um ET. E fiz valer a minha cabeça grande. Sugeri que os estudiosos se deslocassem a João Pessoa para conhecer o acervo e os estudos sobre Cultura Popular disponíveis para pesquisa.
Fui cumprimentado depois, com a naturalidade daqueles risinhos bisonhos, mas continuei sendo visto como um ET. O último exemplo de estranhamento que me causou um colega professor e que eu devolvi deixando a sala em polvorosa, foi num Curso ofertado pela Pós-Graduação em Letras da UFPB, com um professor da USP. Em dado momento, ele falou sobre José de Alencar de modo tímido e desdenhoso, eu, que estudo Alencar desde que fui provocado pelo escritor Edilberto Coutinho, quando me disse, certo dia, que todo estudante de Letras deveria ter lido Como e porque sou romancista, verdadeiro manual de escritor para quem quer seguir carreira nas Letras, eu me inquietei e fui honrar o meu conterrâneo Alencar.
Voltando ao uspiano, olhei para a turma e não vi qualquer manifestação de indignação. Resolvi então mostrar a minha. Perguntei-lhe se ele conhecia o livro José de Alencar: o poeta armado do século XIX, do professor Antônio Edmilson Martins Rodrigues, da UFRJ, que eu acabara de ler. Ele, o ministrante do curso, disse, da mesma forma desdenhosa de antes, que não conhecia e não deveria ser lá grande coisa.
Arrumei minhas coisas, coloquei-as debaixo do braço e, para espanto de todos, disse: essa aula não me acrescenta nada, sua visão de literatura é a mesma de um capitão do mato. E saí para a Praça da Alegria, ambiente de cantina e convivência, onde se aprende mais do que com certas autoridades do saber.
Observação: Pela impossibilidade de desenvolver os argumentos das atitudes de enfrentamento, por conta da extensão do texto para o espaço exigido, lancei apenas o mote, a glosa, quem quiser saber, eu conto depois.
CARLOS GILDEMAR PONTES - Fortaleza–CE. Escritor. Professor de Literatura da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Doutor e Mestre em Letras UERN. Graduado em Letras UFC. Membro da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL. Foi traduzido para o espanhol e publicado em Cuba nas Revistas Bohemia e Antenas. Tem 26 livros publicados, dentre os quais Metafísica das partes, 1991 – Poesia; O olhar de Narciso. (Prêmio Ceará de Literatura), 1995 – Poesia; O silêncio, 1996. (Infantil); A miragem do espelho, 1998. (Prêmio Novos Autores Paraibanos) – Conto; Super Dicionário de Cearensês, 2000; Os gestos do amor, 2004 – Poesia (Indicado para o Prêmio Portugal Telecom, 2005); Seres ordinários: o anão e outros pobres diabos na literatura, 2014; Poesia na bagagem, 2018; Crítica da razão mestiça, 2021, dentre outros. Editor da Revista de Estudos Decoloniais da UFCG/CNPQ. Vencedor de Prêmios Literários nacionais. Contato: [email protected]
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Marcos Antônio De Abreu
Também penso como você, não entendo porque os academicistas brasileiros gostam tanto de cadáveres literários com tanta gente Boa em nosso país com crônicas, contos, romances, ensaios, peças teatrais e um acervo enorme de literatura, que não se pode publicar.Marcos Abreu