O sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel (2016, p. 25), ao refletir sobre a estrutura epistêmica do mundo moderno, afirma que “[…] a interiorização dos conhecimentos produzidos por homens e mulheres de todo o planeta – incluindo as mulheres ocidentais – tem dotado os homens ocidentais do privilégio epistêmico de definir o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para os demais”. Uma explicação para sua constatação é o fato de as universidades ocidentalizadas terem suas estruturas epistêmicas fundamentadas na produção teórica de homens brancos de cinco países: França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Itália. São desses países de onde sai a quase totalidade da produção teórica que compõe o conteúdo das disciplinas e dos projetos pedagógicos dos cursos das universidades eurocentradas.
No Brasil, por muito tempo, preparar-se para enfrentar uma seleção de mestrado em sociologia ou ciências sociais significava estudar e ter domínio do chamado “três porquinhos”: Marx, Weber e Durkheim. Para Grosfoguel (2021, p. 25), “[…] esse monopólio do conhecimento dos homens ocidentais tem gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/sexista epistêmico, desqualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos projetos imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema mundo”. Portanto, quando falamos que o racismo e o sexismo são estruturais significa que eles têm uma base epistêmica e se reproduzem por meio das instituições, mas não somente das instituições educacionais, e sim por meio, também, das instituições do Estado e do mercado, para as quais o complexo educacional prepara seus agentes operadores na sociedade moderna.
O privilégio epistêmico do conhecimento eurocêntrico nas universidades eurocentradas sobre o saber promovido por outros corpos políticos e geopolíticos do conhecimento ao longo do tempo sedimentou um comportamento de injustiça cognitiva que se manifesta pela desvalorização, invisibilização, inferiorização, hierarquização e subalternização das epistemologias não eurocêntricas, o que contribui para projetos de desenvolvimento e políticas imperiais, coloniais e patriarcais de reprodução do capital em todo o planeta, como é o neoextrativismo na América Latina. Segundo Ramón Grosfoguel (2016, p. 27): “[…] o privilégio epistêmico e a inferioridade epistêmica são dois lados da mesma moeda. A moeda é chamada racismo/sexismo epistêmico, na qual uma face se considera superior e a outra inferior”.
Ao levantar o seguinte questionamento: quais os processos históricos que produziram as estruturas do conhecimento fundadas no racismo/sexismo epistêmico?, Grosfoguel conclui, a partir de seus estudos, que as estruturas do conhecimento nas universidades ocidentalizadas foram estruturadas em um processo de longa duração, iniciado ao longo do século XVI, as quais produziram quatro
genocídios/epistemicídios: i – contra mulçumanos e judeus, na conquista de Al-Andalus; ii – contra os povos originários, durante a conquista das Américas em 1492; iii – contra os povos africanos, na conquista da África, e na escravidão dos mesmos, nas Américas; iv – contra as mulheres europeias queimadas vivas, quando acusadas de bruxaria pela “Santa Inquisição Católica”. Todavia, ele defende o projeto de transmodernidade proposto por Enrique Dussel como uma opção para superação das estruturas eurocêntricas de conhecimento. Cito-o (2016, p. 45):
A transmodernidade é o reconhecimento da diversidade epistêmica sem o relativismo epistêmico. O chamado por uma pluralidade epistêmica, como uma oposição ao universalismo epistêmico, não é equivalente a uma posição relativista. Ao contrário, transmodernidade reconhece a necessidade de um projeto global compartilhado contra o capitalismo, o patriarcado, o imperialismo e o colonialismo. Mas ele rejeita a universalidade das soluções, onde um define pelos outros qual é a “solução”. Universalidade, na modernidade europeia, significa “um define pelos outros”. A transmodernidade clama por uma pluralidade de soluções, onde muitos decidem por muitos. A partir de diferentes tradições epistemológicas e culturais surgiram também respostas diferentes para os mesmos problemas. O horizonte transmoderno tem como objetivo a produção de conceitos, significados e filosofias plurais, bem como um mundo plural.
A construção teórica e política de um projeto transmoderno, do tipo transdisciplinar, para decolonização do modelo de conhecimento sedimentado nas universidades da América Latina e, em particular, do Brasil, implica a coexistência, no mesmo processo de formação, entre distintos elementos pedagógicos dos saberes (dos povos originários, dos povos negros, dos camponeses, dos pescadores, dos povos das florestas, da economia doméstica, da construção civil, da arte popular, da medicina popular, etc.) e os saberes universitários vigentes. Implica a construção de centros educacionais de produção, reprodução e ampliação de usos dos saberes não eurocêntricos. Implica, ainda, o reconhecimento da validade desses saberes e da garantia para que eles possam ser transmitidos em igualdade de condições, embora não sejam equivalentes e nem sempre possam ser ensinados de forma disciplinar. Como nos alerta José Carvalho e Juliana Flórez (2014, p. 142, tradução nossa):
[…] a atitude de abertura que busca o projeto reconhece que os saberes, às vezes, são irredutíveis, isso significa que os saberes afros, indígenas, populares e modernos nem sempre têm um equivalente exato nas disciplinas, suas lógicas não podem se traduzir linearmente às lógicas modernas eurocêntricas, nem podem se reduzir a uma de suas disciplinas. Pode ser que alguns aspectos dos sistemas tradicionais, às vezes, sejam redutíveis a alguma teoria eurocêntrica, mas muitos outros não serão. O importante é não tomar a priori a possibilidade de equivalência, de paralelismo entre ambos os tipos de saberes; tampouco partir da suposição inversa, de que não há possibilidade de diálogo científico.
Para que seja feita uma opção decolonial, a universidade necessita passar por transformações antissistêmicas e pluriversais, e não pelas mudanças apontadas por gestores neoliberais e destacadas pelas corporações que atuam na disputa pelo monopólio dos mercados globais. A universidade pública deve ajudar a sociedade civil a pôr em justa dimensão o lugar do Estado e das corporações na sociedade presente e futura, já que suas ações incidem nas condições de nossa existência e do planeta. Portanto, o papel primordial da universidade é ético, sem prejuízo para a produção de ciência e de tecnologia.
Para que seja efetivada a opção decolonial, a transformação da universidade precisa estar relacionada à pergunta acerca de quais são as necessidades da maioria das pessoas do nosso planeta, o qual está sendo afetado por uma crise estrutural do capitalismo e pela crise do padrão civilizatório da modernidade. Embora seja verdade que o padrão civilizatório moderno, com o seu conhecimento científico e tecnológico, tenha criado um mundo fantástico de possibilidades e de muitas facilidades, o mesmo conhecimento tem colocado em risco a existência de todas as formas de vida e do planeta.
Referências
CARVALHO, José Jorge de; FLÓREZ, Juliana. Encuentro de Saberes: proyecto para decolonizar el conocimiento universitário eurocéntrico. Nómadas, n.º 41, p. 131-147, Universidad Central, Colombia, 2014. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/1051/105133774009.pdf. Acesso em: 05 mar. 2021.
GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicidios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n.º 1, Brasília, jan./abr., 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922016000100025. Acesso em: 05 mar. 2021.