“Entre as pernas geramos e sobre isso se falará até o fim, sem que muitos entendam: erótico é a alma” (Adélia Prado).
Se a alma é que é erótica, corruptos são os indivíduos em suas relações pessoais com os outros e como condutores de instituições privadas e públicas. A corrupção é uma prática dualista, implica uma relação entre o corruptor e o corrompido. Corrupto é o indivíduo que oferece suborno ao outro para levar algum tipo de vantagem, como o político que pratica caixa 2, o sujeito que oferece propina ao guarda de trânsito, ou o guarda de trânsito que pede propina para livrar o motorista de uma multa, é o empresário que monta esquemas fraudulentos para vencer licitações públicas, é o funcionário público que aceita propina para facilitar fraudes no sistema público.
A corrupção é uma prática humana institucionalizada por meio das ações de indivíduos isolados ou organizados em grupos de interesses privados. No âmbito da vida social e política, são criadas algumas instituições públicas com o objetivo de combater a corrupção. Ao Poder Judiciário, dentro de suas funções, cabe o combate à corrupção. Todavia, como é um poder composto por indivíduos, sua ação acaba gerando um paradoxo ao se transformar numa instituição suscetível à proliferação de mais corrupção, como venda de sentenças praticadas por alguns juízes, a prática de furar o tento salarial pela invenção e recebimento dos chamados penduricalhos, a condução de operações espetaculosas que desrespeitam o Estado de direito e criam um Estado de exceção, como ocorreu durante a Operação Lava Jato, sob o comando do Juiz Sergio Moro, que jogou na lata do lixo uma oportunidade que poderia ter sido um marco na moralização pública do país.
A corrupção também pode ser abordada por uma visão estruturalista, na qual os indivíduos são tratados como sujeitos sujeitados, pois suas ações são entendidas como determinadas pelas condições sociais, materiais, familiares, culturais e até por desejos do inconsciente. São exemplos de visões estruturalistas nas ciências humanas modernas o marxismo, a antropologia de Lévi-Strauss, a psicanálise lacaniana e o pensamento de Bourdieu e outras mais.
Dentro da leitura do fenômeno da corrupção por um entendimento estruturalista, as estruturas sociais têm um maior peso da definição das práticas de corrupções do que as ações individuais, principalmente a corrupção na política e no espaço público, como a prática do patrimonialismo e o tráfego de influência dos partidos para o controle dos cargos públicos com o claro objetivo de tirar vantagens pessoais e partidárias.
Por isso que personagens políticos, quando governam e nas suas gestões são denunciados, apurados e comprovados vários casos de corrupção, eles não se sentem responsáveis pela corrupção ocorrida durante o seu tempo de mandato, principalmente quando a prática de corrupção, que é atribuída diretamente às suas ações, é revertida no Poder Judiciário, tal fato é usado como prova de inocência. Logo, corrupto é a política, o capital, o mercado e a oposição, como se os indivíduos fossem honestos e as instituições corruptas.
Nas sociedades eurocentradas, que passaram por um processo de ocupação, dominação e exploração colonial, como os países da América do Sul e Caribe, onde caudilhista, populista e o autoritarismo tiveram grande influência e predominância no poder, o tema da corrupção serve para esconder as razões mais profundas da miséria, do empobrecimento, da concentração de renda, da fragilidade da democracia, pois a corrupção aparece como sendo uma prática de raiz em países atrasados, em “repúblicas das bananeiras”, aparece como o principal problema do país. A política vira um simulacro e, por meio da espetacularização da propagada e dos discursos políticos, os corruptos aparecem como homens honestos e como solução para os problemas do país.
A política como simulacro e a espetacularização da política, por políticos de extrema direita à extrema esquerda, é fruto da naturalização de relações autoritárias, de uma democracia frágil e interrompida, sempre que necessárias aos interesses do mercado e do imperialismo, da falta de instrumentos de transparências das instituições estatais, de mecanismos de controle e de fiscalização, por parte da população, das políticas públicas e do orçamento público. É fruto de um processo de privatização da política por parte de políticos e de partidos que se deixam ser capturados pelos interesses do mercado e encontram na política uma maneira de ficarem ricos e influentes. Não à toa que a chamada chegada dos governos progressistas na América do Sul, na primeira década do século XXI, como promessa de pôr fim ao neoliberalismo, suas mazelas sociais e à corrupção, acabou em frustação. Em quase todos governos identificados com a onda progressista, a prática de corrupção não foi diferente de quando o Estado era administrado pela direita neoliberal. Em muitos casos, como no Brasil, os neoliberais corruptos eram aliados do governo. Justificativas: realismo político, presidencialismo de coalizão.
O Brasil é um país de forte herança colonial, patriarcal, branca, cristã e eurocentrado na sua forma de produção e reprodução de conhecimentos, subjetividades e acumulação de riquezas. Todos esses predicados são indicadores do seu marco nascente estribado na violência dos colonizadores, na dominação, na exploração, na mentira e na corrupção. Esse marco é o que configura o ethos cultural, ou seja, o modo de ser e de estar de nossos empresários, políticos, pastores, clero, dos meios de comunicações, que mentem, roubam e saqueiam o país, mas se dizem inocentes, construtores da nação, investidores, empreendedores e gente de bem.
No Brasil, de acordo com o princípio moral moderno: “todos são inocentes até que se prove o contrário”, “princípio da presunção de inocência”, garantido na nossa Constituição de 1988, virou um princípio esdrúxulo. Pobres e negros são culpados até que provem o contrário, pois o racismo é estrutural. O rico branco é sempre inocente, mesmo diante do flagrante delito e provas robustas. Empresários e políticos até que vão presos, mas gastam uma fortuna com advogados, livram-se de processos e saem dizendo que provaram sua inocência. No Brasil, o preceito moral de inocência se prova com muito dinheiro ganhado de forma ilícita.
A inocência é uma noção de colonialidade que se compra com o dinheiro subtraído da exploração dos pobres e subalternos para criar uma imagem positiva dos corruptos. Os criminosos que a sociedade odeia e tem medo são as vítimas do sistema, pobres que comentem delitos para se manterem vivos por meio de pequenos furtos e assaltos à mão armada, são eles que enchem os presídios. É para eles que se aplica o ditado: “bandido bom, é bandido morto”, ditado que não serve para Sergio Moro, Geddel Viera Lima, Marcelo Odebrecht, José Dirceu, Temer, Sergio Cabral, Alberto Youssef, Eduardo Cunha, Bolsonaro e família e tantos outros.
A tirada do Millôr Fernandes, “jamais diga uma mentira que não possa provar”, tem validade para vida política do país. O exemplo mais esdrúxulo desse cinismo é o Lula. O cretinismo de Paulo Maluf, expressado no bordão “roubo, mas faço”, de forma inconsciente, para alguns, e desavergonhadamente, para outros, passou a ser adotado pelo PT e pelos petistas. O comportamento é semelhante: o PT não foi o inventor da corrupção no Brasil, nem o único responsável pela corrupção no país, mas é o partido que tem compromisso com os pobres, com as políticas sociais e com o país. Portanto, é isso que vale, com o PT no poder o país vai chegar ao paraíso, o país vai voltar a ser feliz. Algum dia essa Nação foi feliz? Se foi, imagino que foi antes da chegada dos europeus.
Afirmar que Lula é inocente, como uso político, para afirmar que não houve corrupção durante os dois mandatos presidenciais do mesmo, é fornecer base material para o sentimento moral da filosofia popular, a qual afirma que “quem mente, rouba”. No caso, trata-se de roubo material da coisa pública e da confiança da população. É claro que um político corrupto pode conquistar e reconquistar a confiança ou o voto da população, no Brasil e por toda a América Latina encontramos vários casos, nem o PT e nem o Lula estão inaugurando algo novo ou inédito, estão apenas navegando na velha política e praticando o realismo político contra a ética e a possibilidade de uma nova direção política e moral para o país.
Numa conjuntura política como a vivida atualmente no país, onde se consolidou um sentimento de que qualquer coisa é melhor que Bolsonaro, onde o controle da política é mantido pelos mesmos, onde o mercado demonstra incapacidade de ter um candidato outro, Lula é o que resta.
A corrupção é, também, um instrumento do mercado utilizado para acumulação de riquezas. A prática de corrupção no mercado é tão comum que já foi naturalizada. Todavia, o mercado ainda se comporta como se sua existência, dentro da lógica de acumulação de riqueza, fosse possível sem o Estado e sem a prática de corrupção. Se considerarmos apenas a área de alimentação, os exemplos são abundantes. Durante a inspeção nos produtos de pesca, por ocasião do período de Páscoa, tanto nas indústrias quanto nos supermercados, três fraudes são comuns: i – fraude econômica, por troca/substituição de espécies, em que o consumidor paga por cortes nobres e leva uma espécie de menor qualidade e valor; ii – fraude por adição abusiva de água na embalagem, fazendo com que o consumidor pague por um quilo de peixe e leve, em média, 700 gramas; iii – fraude sanitária, por meio de adição de produtos químicos que promovem a absorção de água em filés e aumenta em até dez vezes os níveis de sódio no produto.
Para combater a corrupção e a falta de ética do mercado, o Estado criou a Lei do Código de Defesa do Consumidor (1990), as delegacias do consumidor (Decon), os Institutos de Pesos e Medidas (Ipem) e outros aparatos. Todavia, os processos de privatização são os exemplos mais nocivos de corrupção do mercado contra a coletividade. Estatizar determinada atividade econômica em benefício público é condenado pelo mercado como uma prática populista e atrasada, mas privatizar um patrimônio público para exploração privada é tido pelo mercado como um ato virtuoso, moderno.
Quando Mészáros afirma, em seu livro “A crise Estrutural do Capitalismo”, que “a fraudulência, numa grande variedade de suas formas práticas, é a normalidade do capital”, duas teses perdem validade no pensamento liberal, transformando-se numa falácia: i – a ideia do livre mercado como mecanismo de alocação de recursos e determinação do lugar que uma empresa vai ocupar a partir do seu desempenho num sistema competitivo; ii – a ideia de que o Estado não deve desempenhar atividade econômica porque é ineficiente, corrupto e burocrático. Todavia, por meio de vários exemplos do cotidiano, podemos demonstrar que a corrupção (a fraudulência) no mercado é estrutural, que o mercado privatiza a política e captura o Estado por meio de processos de corrupção ativa. A seguir, citamos alguns desses exemplos.
Primeiro: nas delações premiadas, muito comuns durante a atuação de Sergio Moro na Operação Lava-Jato, executivos da transnacional brasileira da indústria da construção civil, Odebrecht, contaram como corrompiam políticos de todos os matizes ideológicos em troca de benefícios privados. A organização global em questão praticava corrupção por meio de transferência de dinheiro para campanhas eleitorais, através de doações registradas no STE, com contribuições não registradas (o chamado caixa 2) e também com dinheiro em espécie transportado em malas (propinas). Em troca, a empresa ganhava obras superfaturadas, aprovação de leis para pagar menos ou ser isenta de pagar impostos, além de contar com a ajuda do Estado para pagar e fechar negócios no Brasil e no exterior.
A Odebrecht, segundo o depoimento de seus executivos, tinha institucionalizado em sua estrutura administrativa um “departamento de propina”. O esquema para o desvio de recursos públicos seguia três passos de um ciclo vicioso: i – parte do dinheiro de contratos superfaturados, com obras faraônicas que eram demandadas do mercado para o Estado, era alocada no setor de operações estruturais da Odebrecht (o denominado “departamento de propina”); ii – do setor de operações estruturais, o dinheiro era distribuído a políticos de acordo com os interesses da empresa; iii – a Odebrecht se beneficiava da sua ação de corromper o poder público e virava bilionária, mas, para todos os efeitos, a acumulação de riqueza e capital aparecia publicamente como fruto de sua competência técnica e competitividade no mercado.
Segundo, em março de 2017, a Polícia Federal no Brasil deflagrou a chamada Operação Carne Fraca, contra o grupo JBS, dono da Sadia, Swift, Friboi e Vigor, e a BRF, dona da Sadia e da Perdigão, empresas pertencentes aos irmãos Batista. As empresas foram acusadas de comercializar carne estragada, mudar data de vencimento, colocar papelão nos embutidos, usar produtos químicos para maquiar o aspecto da carne, revender carne estragada e corromper agentes de fiscalização do Estado para conseguir liberar os produtos fraudados para venda no mercado nacional e internacional.
Terceiro: foi bastante divulgado pela imprensa brasileira que a campanha de Bolsonaro à Presidência da República em 2018 recebeu financiamento de empresas produtoras de armas e de empresas privadas de segurança. No dia 15 de janeiro de 2019, logo após a posse do atual presidente do Brasil, o jornal El País, em uma matéria intitulada “Taurus, ascensão de um fabricante de armas com Bolsonaro” (MORINI, 2019), afirmava que, ao assinar o decreto que flexibilizava as regras para a posse de armas, as ações da Taurus haviam disparado nas bolsas de valores e acumulado uma alta de 82%. Essa alta foi fruto do livre mercado ou de sua mão invisível?
Quarto, o leite é um produto que sofre fraude desde o momento em que é o produzido até a venda no supermercado: i – fraude por adição de água para aumentar o volume; ii – fraude por adição de reconstituintes para aumentar volume e esconder a adição de água; iii – fraude por adição de conservantes para aumentar a durabilidade; iv – fraude por adição de neutralizantes para mascarar a acidez da fermentação microbiana; v – fraude por adulteração da data de validade.
Quinto: em vários países do mundo, em plena pandemia do coronavírus, eclodiram denúncias de corrupção no mercado envolvendo práticas de superfaturamento em negociações de empresas com os Estados nos processos de compra e venda de equipamentos, como respiradores, de medicamentos e de outros produtos hospitalares. Nas investigações realizadas, fica claro que, na maioria dos casos, as organizações criminosas partem do mercado para as demandas dos Estados. É certo que a corrupção é uma relação que envolve corruptores e corrompidos. Trata-se de uma ralação em que o mercado e o Estado se retroalimentam, em um ciclo vicioso de apropriação ilegal dos recursos públicos.
O capitalismo é de direita e de esquerda, comporta a corrupção como instrumento de sua reprodução econômica e política. O anticapitalismo é dionisíaco e exige uma alma erótica. Sobre isso, devemos continuar falando por um longo tempo enquanto lutamos por um novo horizonte utópico pluriversal e transmoderno.