A frase é de Dostoiévski e aparece em pelo menos dois romances do escritor russo. Mas o seu simbolismo ganha peso no delicado momento em que o ideário neofascista ganha corpo ao redor do mundo com a vitória da ultradireita nos Estados Unidos.
A trazer alento ao que poetiza o autor de “Os irmãos Karamazov” (1879), estreia nesta quinta-feira 7, nos cinemas do País, “Ainda estou aqui”, o aclamado filme de Walter Salles sobre os horrores da ditadura militar no Brasil a partir da destruição de uma família durante os anos de chumbo.
Não bastasse o que traz de belo artisticamente falando, o filme lança luz sobre o que está por trás do festejado avanço da extrema direita após a vitória de Donald Trump e seus assanhados reflexos no Brasil sob o manto do que existe de mais arcaico e perverso em matéria política: falência dos direitos fundamentais do homem, negacionismo ideológico, retrocesso geopolítico, exaltação da tortura e dos torturadores, desprezo pelas mulheres, pela comunidade LGBTQIA+, tentativa de extermínio das comunidades indígenas, liberação de armas e corrupção desenfreada.
Sem esquecer que o filme de Walter Salles reúne condições reais de arrebatar pelo menos um Oscar numa das seguintes categorias: melhor filme internacional (melhor filme em língua estrangeira), melhor diretor (Walter Salles), melhor atriz (Fernanda Torres), ator coadjuvante (Selton Mello), roteiro adaptado (Murilo Hauser e Heitor Lorega) e montagem (Affonso Gonçalves).
“Ainda estou aqui”, sabe-se, foi laureado com o prêmio de melhor roteiro em Veneza, além de alardeado pela imprensa italiana como verdadeira obra-prima.
Com roteiro adaptado do livro homônimo de Marcelo Paiva, o filme narra o drama da família do ex-deputado federal Rubens Paiva, assassinado pelo regime militar nos anos 1970. Mas o assassinato de Paiva, pai do escritor Marcelo Paiva, como que serve de pano de fundo para a trágica trajetória de sua família, tendo à frente a viúva Eunice, interpretada por Fernanda Torres.
Numa atitude que lembra grandes heroínas da literatura e do cinema (e tantas mulheres simples do País durante a ditadura militar), Eunice teve de encontrar forças quase inumanas para enfrentar as dificuldades financeiras e emocionais de sua família, e, sobretudo, conseguir o reconhecimento legal de que Rubens Paiva fora brutalmente assassinado pelo governo militar.
Por essas e outras razões, que extrapolam os limites da arte, “Ainda estou aqui” deve ser recebido com entusiasmo também no Brasil. Conforme declarou Walter Salles em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, “O filme é um exercício de reconstrução da história pessoal [de Rubens Paiva] mas também coletiva”.
Em boa hora, pois, “Ainda estou aqui” presta-se a mostrar como os regimes autoritários de extrema direita geram sofrimento e dor, quase sempre disfarçados de nacionalistas e de combate ao que, imprecisamente, definem como “comunismo”, bem na perspectiva do que se tem visto no Brasil desde 2018.
Como a ratificar a poética afirmação de Fiódor M. Dostoiévski, o filme de Walter Salles constitui oportuno exemplo de que a beleza haverá de salvar o mundo.