A Alquimia de um olhar para a eternidade – Sérgio Costa

 

Toda arte é possuidora de uma às vezes sutil amálgama entre a precisão científica e a magia poética. Assim era antigamente com a Alquimia, por exemplo, precursora da Química e cujos fervorosos praticantes perseguiam incessantemente a tal Pedra Filosofal. 

 

Com um pé na magia, mas com um outro muito bem embasado nos fenômenos e ciências naturais, esta arte perdida era o meio e também o fim daqueles mais gananciosos pela vida eterna e outros poderes que acreditavam ser possíveis de alcançar.

 

Com os pés, as mãos e os olhos na terra (mas dependendo do objeto mirado, para além dela), a Fotografia guia seus praticantes como meio e fim não da busca pela riqueza, elixires mágicos ou imortalidade, mas como o eternizar de momentos em imagens, onde o elixir máximo se encontra justamente no encantamento de quem vê sentimentos e intenções eternizados numa figura.

 

Em seu lado científico, esta é privilegiada por justamente fazer uso prático da química para criar pura mágica aos olhos. E também por ser desenvolvida graças a outra ciência irmã, a Física, capaz de produzir os efeitos da imagem através do ramo da Ótica, estudando e guiando o uso dos raios de luz dentro dos espelhos e lentes, obturadores e sensores, velocidades de exposição e sensibilidades ISO, dentre outros parâmetros técnicos. Mas na parte da magia, o que conta para complementar o fazer desta arte é mesmo o chamado “olhar fotográfico”. A sensibilidade de quem faz o clique no momento certo, com a sombra e a luz ideais sobre o objeto. Com as condições perfeitas de enquadramento não só do cenário ou objeto à sua frente, mas também de quando estão alinhados olho, mente e coração. 

 

O fotógrafo, assim, é o artista que captura e congela o momento, capturando também nossa atenção e admiração por tudo que o contexto da foto tem a dizer naquele momento. Ou, com sorte, em todos os momentos. E apesar de não entender tanto sobre fotografia (minha pobre Nikon D3100 tá ali empoeirando e com um motor de lente quebrado esperando consertar), se tem um cara que me chama atenção nessa habilidade em capturar significados em momentos é o americano Steve McCurry.

 

Steve tem grande parte de sua obra creditada em páginas clássicas da revista National Geographic e possui uma predileção muito forte por um assunto em específico, que é a questão dos conflitos no Oriente Médio. Há outra particularidade em seu trabalho: ele utiliza basicamente só o Modo Automático em sua câmera – muitos fotógrafos se gabam de usar só o Modo Manual, que permite configurações mais finas na captura da imagem, mas McCurry optou justamente por deixar a câmera “no controle”, neste sentido. Mas só neste sentido mesmo, pois o que Steve captura não deixa de ser carregado de uma força imagética, artística e também política.

 

Ele é o responsável pela icônica foto da menina afegã, que estampa a capa mais memorável da revista NatGeo. Batizada simplesmente de “Garota Afegã”, a foto foi tirada num campo de refugiados, que à época tentavam cruzar a fronteira com o Paquistão para fugir de uma das guerras mais intensas provocadas ainda no final dos anos 1970, quando as tropas da antiga URSS invadiram o Afeganistão. A menina da foto se chama Sharbat Gula, e tomei um baita susto no dia em que descobri que a imagem é datada de 1984. Eu não era nem nascido (“porque você é jovem!”) e ela já circulava o mundo sendo tão pictórica, vívida, cheia de significado, lucidez e tão reconhecível que poderia muito bem ter sido feita a apenas uns três anos atrás. 

 

A clareza, limpeza e cores da foto (o vermelho de seu hijab, pano que cobre o rosto e o pescoço, é tão vivo quanto sangue) são tão perfeitas que por isso mesmo ela parece inacreditavelmente muito, muito mais recente. Não só por conta disso (da técnica): por sua tamanha representatividade e força, até poderia me atrever a dizer que “Garota Afegã” chega ao nosso século como uma nova Monalisa. E a beleza, tal qual a do retrato feito por Da Vinci na época, é realmente indiscutível. Os lindos olhos verdes e o semblante da menina com certeza capturam. Mas o que dá a força mesmo é o amplo significado que ela traz. 

 

Posso me atrever, novamente, a dizer que a foto tem muito mais impacto social e político neste século por ter tanta interpretação em suas camadas: o drama dos refugiados, a condição da mulher submissa nos países do Oriente Médio e tantos outros subtextos podem ser extraídos da imagem. O próprio olhar enigmático de Sharbat não traz nada de amigável ou sequer esboça um sorriso como o de La Gioconda; a expressão da garota traz uma fúria incutida que contrasta com seus olhos verdes. Seu hijab vermelho-sangue, apesar da beleza rúbea, está todo danificado, sujo e rasgado, mas mesmo assim é possível entender o misto de dor (seus pais haviam sido mortos em um ataque aéreo algum tempo antes) e doçura pueril no instante em que foi clicada. Era também a primeira vez que a menina via uma câmera fotográfica, aos 12 anos de idade. Tudo se harmoniza na foto: os sentimentos implícitos, o contraste de suas vestes, sua pele amarronzada castigada pelo forte sol daquele canto do mundo, o borrão verde ao fundo. McCurry credita todo esse cenário e oportunidade, em algumas entrevistas, a um “alinhamento milagroso das estrelas” para que o clique fosse possível. E a julgar pelo peso da imagem até hoje, realmente foi.   

 

Reitero que não pretendo criticar a Monalisa, sem dúvida um dos símbolos mais importantes da arte, mas convenhamos que ela foi “fotografada” por Da Vinci representando muito mais uma ode à beleza (pelo menos à época) do que propriamente sendo um veículo de mensagem política e social tão forte quanto a que a menina afegã transmite em seu semblante. Imagino, assim, que o fazer fotográfico seja ofício de muito mais imersão em todos os seus processos, desde a busca do clique perfeito pelo olhar fotográfico apurado até a revelação através da ciência química. E culminando, claro, no significado atribuído à obra perante o contexto de mundo. Que seja, portanto, um processo muito maior do que tentar captar uma imagem por seu smartphone, como nos dias de hoje. Claro, depende muito da mão e da técnica/sensibilidade de quem o faz, pois mesmo os equipamentos nem tão pretensiosos podem render muito bem se utilizados por quem tem “o olhar”. 

 

Lendo recentemente a biografia do publicitário Washington Olivetto, em determinado momento ele critica algumas campanhas que eram feitas (e ainda são) com o objetivo único de ganhar prêmios de publicidade. Esses trabalhos são chamados de “fantasmas”, justamente porque não são reais e nem levados a público, servindo só como inscrição para os concursos da área. Olivetto os critica pela própria falta de propósito dos mesmos (a não ser ganhar prêmio), pois como as campanhas não vão ao ar e não provocam a busca e compra do produto anunciado – o propósito final da publicidade, elas não tiveram o devido “valor” em sua construção, pois não passaram por todo o processo de necessidade, pedido do cliente, demanda, debate, criação e aprovação. Ou seja: falta-lhes propósito. Talvez assim valha também para o processo fotográfico, e bem dizer para tantas outras artes.

 

No fim, o que vai separar os meninos dos homens é a dedicação e o foco – inclusive o fotográfico. A busca de um olhar universal através dessa alquimia que começa nas lentes e termina no coração é o que faz a paixão pela fotografia ser tão popular e atemporal. Os olhos verdes da menina afegã que o digam, com tanta história e sentimento em suas retinas, que também são as do mundo inteiro. Tudo numa arte que realmente dura, olhando os olhares na eternidade.

 

 

Sérgio Costa

Bacharel em Ciências Sociais pela UFC e em Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) pela Fanor/DeVry. Publicitário por profissão, empresário por coragem e guitarrista por atrevimento. Apaixonado incurável por música, literatura, boas cervejas, boas conversas, viagens inesquecíveis e grandes ideias. Escreve quinzenalmente sobre música para a coluna Notas Promissoras do portal Segunda Opinião.

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Sérgio Costa

Bacharel em Ciências Sociais pela UFC e em Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) pela Fanor/DeVry. Publicitário por profissão, empresário por coragem e guitarrista por atrevimento. Apaixonado incurável por música, literatura, boas cervejas, boas conversas, viagens inesquecíveis e grandes ideias. Escreve quinzenalmente sobre música para a coluna Notas Promissoras do portal Segunda Opinião.