MAL DE CARNAVAL: TUDO SE FAZ POSSÍVEL… ATÉ CINZAS! (PARTE II), por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

“Será que papai está pensando em mim? Pode ser que ele ainda esteja em algum lugar, talvez esteja me observando. Não, o papai virou pó. Uma caveira nua e brilhosa. Um monte de pó. E todas as ideias dele a meu respeito – pó também. E as lembranças, os amores, os ódios, o desânimo dele, tudo pó. Não, menos do que pó – são apenas pulsos eletromagnéticos desaparecidos há muito tempo, sem deixar vestígio.”¹ (Irvin D. Yalom², em Dupla revelação – MAMÃE E O SENTIDO DA VIDA: histórias de psicoterapia – trad.: Lúcia Ribeiro da Silva – Rio de Janeiro: Agir, 2008; pág. 183).

Sábado gordo. Ali, no sombrio e silencioso quarto principal da casa de cinco cômodos onde moravam, sentada na lateral da larga cama, cuja roupa foi recentemente trocada – colcha, lençóis e fronhas –, de alvura e limpidez que recendem zelo e cuidado e liberam uma aroma agradável, de flores do campo, ela afagava os cabelos brancos de sua mãe enferma, gravemente acometida do mal de Alzheimer, ou seja, deambulante entre a vida inútil, sem perspectivas, sem sentido razoável, o olhar fixo e perdido na vastidão do nada, e a morte, sempre à espreita, diáfana e translúcida, insensível a sentimentos humanos de qualquer tipo, ordem, natureza, enquanto ia extraindo de sua generosa memória fatos que certamente concorreram para que ambas – mãe e filha – ora se encontrassem em situação tão delicada quão crucial.

Ao longe, no curso inexorável do tempo, a frustração de não ter podido materializar seu maior sonho, alimentado desde criança e mais ainda na pré-adolescência, de ser mais que serva de Deus, esposa do Filho do Homem, de ingressar na vida monástica, contemplativa, de clausura, pobreza e renúncia, apesar do estímulo e apoio incondicional da mãe, católica fervorosa, e da ajuda inestimável do pároco de sua cidade – metrópole interiorana, oásis em meio à impiedosa, incontornável e vasta desertificação do sertão –, capaz de exercer alguma influência em altos postos da hierarquia eclesiástica e contornar algumas exigências burocráticas, ou seja, de abrir-lhe as portas do convento, do tão desejado claustro. Entretanto, o pai, rude, grosseiro e ignorante, ao saber dessa sua opção, cortou-lhe as asas, impediu-a de alçar voos e deu-lhe o tiro de misericórdia: “Isso não passa de uma brincadeira de mau gosto. Filha minha não nasceu pra esse negócio de ser a esposa de Cristo. Nem eu tenho perfil para ser sogro dele. Quando o facho esquentar, eu quero ver se você vai aguentar uma vidinha insossa, inexpressiva!” E revelando o seu desmedido interesse por coisas mundanas, por bens materiais, tangíveis, tilintantes, arrematou: “Eu tenho planos bem mais interessantes para você! É só uma questão de tempo”.

Logo, tornou-se necessária e inevitável a fuga para a cidade grande, para a casa da avó, por aconselhamento materno, ante os planos ambiciosos do pai que, como se ainda vivesse nos tempos medievais, pretendeu arranjar-lhe um casamento de exclusivo interesse pessoal, sob o pretexto de assegurar o futuro de sua única filha, em que o ungido, bem apessoado, gentil cavalheiro, desempenhava funções importantes em agência de banco público – o que certamente lhe renderia, na condição de comerciante e sogro, tratamento especial, além de algumas outras sempre bem-vindas vantagens financeiras –, uns quinze anos mais velho que ela e, já no primeiro contato, incapaz de nela despertar algum sentimento que não o desprezo, potencializado tão logo soube ser ele casado há algum tempo, com família estabelecida na capital. Ficou apenas a sensação – dolorida, por sinal – de que seu pai a houvera tratado como mercadoria de troca.

Seguiu-se, então, a separação dos pais, por iniciativa da mãe que, ofendida pelas recorrentes traições de quem lhe jurara amor eterno e que acabara se revelando um ser desprezível no seu ultrajante egocentrismo, no seu insaciável desejo por bens materiais e no seu repugnante e doentio apego às aventuras extraconjugais, mudou-se, também, com malas e bagagens, para a casa da mãe.

Com o núcleo familiar destruído, vêm as tragédias: o desvio de conduta do irmão mais novo que, não suportando o peso da presença física do pai severo e sem escrúpulos, além de renunciar à saudável convivência com a mãe, na casa da avó, e de desprezar os valiosos ensinamentos maternos, enveredou pelos caminhos tortuosos – e sem volta – do vício e da violência, o que o levou a ter a vida ceifada pela inesperada reação de uma vítima de seus sempre violentos assaltos, sob a proteção do capacete e jaqueta preta com detalhes em azul e ante a possibilidade da fuga rápida na garupa da moto – de placas frias, é óbvio – de um jovem e furioso parceiro de “paradas”; o suicídio do pai, tão logo lhe deram ciência de que, ao reagir a um assalto e assassinar os dois marginais com tiros no peito e na cabeça, um deles era o próprio filho, o caçula, em que tantas esperanças depositara… com a mesma arma, explodiu os miolos, pondo fim a tão inconsequente vida.

Verificou-se, então, o declínio vertiginoso – ou seja, intenso e rápido – da saúde da mãe, alcançada por um devastador quadro depressivo que evoluiu crucialmente para o atual estágio do mal de Alzheimer. Morta-viva, tornou-se completamente dependente dos cuidados de terceiros. E isso a fez – ainda jovem e solteira – assumir a função de cuidadora daquela que lhe deu à luz, cujo desempenho sempre revestiu de dedicação, gratidão e respeito.

Com a morte da avó, na tranquilidade do leito em que dormia o sono dos justos, a família se reduziu a ela, à mãe enferma e ao irmão mais velho, dono de oficina mecânica, que optara por um estilo de vida oscilante entre comportamento responsável e inconsequentes desregramentos. Luz e trevas. Mãe e pai.

Estava tão absorvida por um complexo emaranhado de sentimentos que os fatos ora revividos lhe causavam ao penetrar-lhe furiosamente o agora conturbado espírito que não ouviu o som do telefone. A insistência do toque melódico, embora irritante ao tornar-se repetitivo, despertou-a para a realidade, libertando-a do pesadelo que tanto minava a sua resistência. Precisava, sim, ser resiliente. E o enfrentamento de sua realidade, com a esperança de lhe impingir outros matizes, mais vivíficos, mais auspiciosos, mais agradáveis, poderia – quem sabe?! – começar ali, agora, num simples gesto de atender uma chamada telefônica. Fê-lo.

– Alô!

– Minha filha, como está a sua mãe?

– Ó tia, mamãe continua na mesma. Às vezes, acho que ela até se mostra disposta a reagir… logo percebo que são apenas espasmos de quem já se desconectou totalmente de tudo o que compunha o seu mundinho bem particular. Não alimento esperanças, tia.

– Minha filha, estou indo agora mesmo para a casa de vocês. Vou passar este fim de semana cuidando da minha irmã. Vou liberar você para curtir o que toda pessoa saudável e cheia de vida tem direito. Que tal uma noite de carnaval?

– Mas tia…

– Não tem nada de mais ou de menos. Eu não admito que você não aceite o meu presente, moça. Hoje à noite, você vai se divertir. Acredite: essa é uma exigência de sua mãe; eu apenas vou servir – e com muito prazer – de instrumento para tornar efetiva a vontade dela.

– Oh, tia!

– Vá se preparando, menina… física e psicologicamente. Logo mais, chego por aí. Não quero vê-la triste. Carnaval é sinônimo de alegria. Um beijo e até mais.

– Tchau, tia!

Ao desligar o telefone, lembrou-se do pai vociferando: “Quando o facho esquentar…” Permitiu-se sorrir. O meu facho! O meu pai! Que coisa!

E, agora, ela estava ali. Firme, disposta, resoluta. Nada de fantasias, exceto uma rosa vermelha presa ao cabelo na altura da orelha esquerda. Ela, simplesmente ela… que tanto renunciara às ofertas mundanas. Ali, em plena avenida iluminada, em meio a pessoas que transpiram alegria e desejos inconfessáveis, de pé num estreito meio-fio, à procura, com os olhos negros de pantera, de um assento na arquibancada à sua frente, já aparentemente lotada. De repente, a surpresa de um insistente olhar, mais parecendo um facho de luz que emana de um farol, lá no alto, a indicar-lhe um porto seguro naquele buliçoso mar de gente alegre.

Notas do autor:

¹ Segundo Yalom, fantasias de Myrna, uma paciente do dr. Ernest Lash, psicoterapeuta.

² Irving D. Yalom, psiquiatra, é autor de diversos “best-sellers”, entre eles QUANDO NIETZSCHE CHOROU, MEMÓRIAS NO DIVÃ e O CARRASCO DO AMOR.

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