A sociedade contemporânea possui por hábito cultuar algumas palavras que terminam por marcar um determinado período de sua (frágil) história e nada mais. Ocorre que as palavras, em si, não são mais que, apenas, palavras. Verbetes desconectados da realidade política, econômica, social e cultural ganham espaço no mundo da filosofia, da sociologia, da história e outros territórios do saber, para usar uma expressão de Foucault e como bem expressou José Saramago em A Caverna quando nos ensina que “comparando com a velocidade instantânea do pensamento que segue em linha recta até quando parece ter perdido o norte, cremo-lo porque não percebemos que ele, ao correr numa direção, está a avançar em todas as direcções, comparando, dizíamos, a pobre da palavra está sempre a precisar de pedir licença a um pé para fazer andar o outro, e mesmo assim tropeça constantemente, duvida, entretém-se a dar voltas a um adjectivo, a um tempo verbal que lhe surgiu sem se fazer anunciar pelo sujeito, essa deve ser a razão por que Cipriano Algor não teve tempo para dizer à mulher tudo quanto viera pensando, aquilo de não ser justo.” (SARAMAGO, 2000, p. 460)
Inclusive, o extrato retirado da obra de Saramago possui um não sentido se não afirmarmos a crítica feita pelo escritor português ao estudo, apenas, de palavras presentes em inúmeros dicionários. Soltas, livres, caminham por todos os cantos e para todos os lados sem conseguir formar um texto e sem um contexto. A palavra escrever (utilizada neste momento por nossa pessoa) não tem sentido caso não esteja localizada em um determinado texto e contexto. A liberdade das palavras, portanto, é uma não liberdade. Residem a partir de seus sentidos, signos e significados postos, isolados ou todos ao mesmo tempo, em um texto. E para não dizer que não falamos no tempo é necessário refletir sobre a importância do significado de algumas palavras ao longo do tempo. A literatura sempre esteve atenta a tal sentido perdido nas palavras. Basta lembrarmos da discussão aberta por Emília com Dona Benta quando esta narrava a estória de Dom Quixote de La Mancha e, ao falar sobre o autor, Emília discorda do nome do autor, Miguel de Cervantes Saavedra, devido a algumas palavras não contarem com nenhum A, enquanto ele se arvorava de possuir dois. Discussão não resolvida a boneca de pano criada por Monteiro Lobato vai até o livro e risca o segundo A afirmando que o nome continuava sendo o mesmo.
Ante estes dois exemplos advindos do mundo da literatura, Saramago e Monteiro Lobato, poderíamos afirmar da desnecessária existência dos dicionários. O que são? São livros? São os dicionários livros? Vamos tentar por uma resposta a cada uma das questões postas e expostas. O que são os dicionários? Um amontoado de palavras onde, dependendo do autor, cada palavra terá um sentido/signo/significado diferente. Surge, então, uma outra questão derivada da primeira. Quem escreve um dicionário pode ser chamado de autor? Acreditamos que não. O autor é alguém livre e a usar da liberdade de escrita para dar vida às palavras. O que são, na realidade, “autores” de dicionários? Nada mais que inquisidores das palavras, mortificadores dos sentidos, dos signos e significados, amantes do arbítrio e adoradores da vontade única à palavra. Neste caso, a sua vontade.
São (os dicionários) livros? Não, não são. Não passam, na realidade, de um amontoado de palavras mortificadas por seus autores. Acontece, inclusive, de quando da reformulação de um dicionário existir o banimento de algumas palavras apenas por vontade do “autor” do “livro” dicionário. Não seria errado afirmar ser o dicionário o Estado em sua vertente arbitrária e onde o autoritarismo está presente em todos os momentos de forma a retirar das palavras a liberdade.
Chegamos, assim, a conclusão de que os dicionários não são livros (terceira questão) e seus autores são não autores. Pessoas sem vida a usar do arbítrio em relação à arte, ao escrever, ao pensar. Mortificam as palavras para que aqueles a usarem do pensar quando forem usar das mesmas estejam presas às mesmas, ao substantivo, ao adjetivo, ao tempo verbal. Pois, estes “autores de livros” denominados dicionários não se contentam apenas com o sentido, o signo e o significado das palavras. As apresentam, inclusive, como devem ser conjugadas dentro de sua vontade, denominada de tempo verbal. É um atentado à licença poética.
Não bastasse tamanho autoritarismo presente nos dicionários outros territórios do saber passaram a ter um leque de não autores que escrevem sobre dicionários de filosofia, história, direito, sociologia, biologia e um sem fim de áreas do conhecimento. Escrevem pondo sentido às palavras como fosse possível definir, antes do texto e do contexto, o sentido, o signo e o significado das palavras. Filosofar, portanto, passou a ser uma ida a um “livro”, no caso um dicionário, de filosofia e trazer à tona o sentido posto, de forma arbitrária, às palavras. É, praticamente, uma defesa do não pensar, do não filosofar.
A narrativa até o presente posta nos abre o caminho para discutir a palavra empatia que passou a ganhar espaço na sociedade totalmente desconectada de textos e contextos. No Dicionário Aurélio empatia está exposta como “capacidade de identificar-se totalmente com o outro.” (AURÉLIO, 7ªEd., p. 341) levando a um entendimento equivocado do sentido, signo e significado da empatia. Empatia não significa, nem nunca significou, uma identificação com o outro, mas um colocar-se no lugar do Outro. Erra o dicionário ao colocar a possibilidade de identificação com o outro que, para além de um erro, uma não leitura da humanidade em suas relações sociais. Primeiro, não existem seres humanos identificados com o outro, porque tal fato nos levaria a uma ideia de igualdade entre seres distintos, diversos em sua forma de pensar, agir ser.
Erra o dicionário ao afirmar ser isto uma capacidade, que somente pode ser humana, de identificar-se com o outro. O Outro ocupa seu espaço e este deve ser respeitado. Todavia, tal fato não impede que nos coloquemos no lugar do Outro e de como poderíamos, ou não, reagir estando no lugar daquela outra pessoa. Isto não pode ser visto como uma capacidade, mas como algo presente às relações sociais e que deve ser desenvolvido (na realidade recuperado) entre os seres humanos em seus diversos tecidos sociais.
Tania Singer citada por Daniel Goleman no livro Empatia afirma ser necessário “entender os próprios sentimentos para então entender os sentimentos dos outros.” (GOLEMAN, Daniel. Empatia, p. 14) e adiante o autor fala na tríade da empatia em cognitiva, emocional e empática o que difere em sua totalidade de ser tal situação uma capacidade de identificação com o outro. Vivemos uma sociedade individualista ao extremo onde as pessoas, quando pensam, pensam apenas em si, para si e na busca de anular o Outro.
Entretanto, a palavra empatia ganhou a grande mídia e as mídias sociais de forma a expor que é necessário ser uma pessoa detentora da empatia (muito comum em Relações Humanas) sem que as pessoas estejam a compreender a si, quanto mais a desenvolver a condição de se colocar no lugar do Outro. Enquanto não conseguimos desenvolver a capacidade de olhar para nosso interior, de vencermos nossos medos e aprendermos a respeitar o Outro a palavra empatia será apenas mais uma palavra midiaticamente posta, um modismo no universo das palavras.
O maior problema de tal fato é a anulação da própria empatia em seu signo filosófico, sociológico e histórico. Precisamos superar o individualismo reinante a operar em nossa sociedade para podermos falar de, e sobre, empatia. No Séc. XIX um escritor brasileiro nomeado de Machado de Assis escrevia um conto, dos milhares que escreveu, intitulado de O Espelho: Esboço de uma nova teoria da alma humana. No conto em questão está escrito de que “o alferes eliminou o homem” a perfeita leitura de Machado relacionada a questão da empatia reside na condição humana de se colocar no lugar do Outro sem a devida compreensão de seus próprios sentimentos. O alferes eliminou o homem porque o homem não compreendeu a posição social ocupada e deixou ser a posição maior que o próprio.
Perdemos, por este olhar, a noção do espelho enquanto necessidade de não apenas nos vermos refletido em nosso exterior, mas usarmos o espelho na condição de olharmos para nosso interior, entendermos nossos sentimentos para, aí sim, desenvolvermos a condição de nos colocarmos no lugar do Outro de forma a entende-lo, porque primeiro nos entendemos enquanto ser. Deixemos, então, a solidariedade para um outro momento. Afinal, desenvolver empatia não significa, como a mídia afirma, ser solidário. Assim como outras questões, ditas, humanas.