55 notas 1000 na redação do ENEM. Como assim? – por Carlinhos Perdigão

Criado como elemento moderno em torno da entrada do aluno do ensino médio ao superior, o ENEM tem se notabilizado mercadologicamente como um filão “mui interessante”. Neste ano mesmo, há instituições de ensino se vangloriando de estudantes ali presentes que chegaram à nota 1000 na redação. Acrescente-se que essa nota envolve uma escrita sem fugas ao tema, com uma análise pertinente e que envolva a busca de possíveis soluções – a chamada “atitude responsiva” – para a situação-problema veiculada.

Nesse sentido, destaque-se que foram apenas 55 redações que “tiraram” nota 1000, isso de um total de 4,1 milhões de redações aplicadas! Afora as mais de 100 mil provas zeradas! Aliás, sobre toda essa conjuntura, e focando o recorte de um resultado tão baixo de redações consideradas “perfeitas”, o articulista se lembra de um quadro humorístico na tevê brasileira dos anos de 1980 cujo personagem dizia: “eu só queria entender…”

Diante de tal quadro, algumas reflexões se impõem. Marina Yaguello, na apresentação do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, de Bakhtin, cita que este filósofo da linguagem russo – em consonância com Saussure, teórico suíço que impulsionou o desenvolvimento da linguística enquanto ciência autônoma – analisava a língua como “um fato social cuja existência se funda nas necessidades de comunicação” (2004: 14). Conectando essa afirmação à redação do ENEM, grosso modo, compreende-se haver algo estranho em torno de um resultado tão pífio. E que é tornado público a partir de publicidades vorazes destacando o resultado esplêndido e admirável de tão poucos alunos “1000”! Paradoxo? Contradição? Como assim?

Assim: a escrita é uma forma de comunicar, ou seja, de fazer circular socialmente a mensagem que um produtor de textos emite; e isso envolve aspectos cognitivos ligados também à leitura. O ato de ler, por sua vez, ajuda a formar/potencializar a compreensão da realidade de cada um; portanto, vai muito além da mera decodificação de letras e de decifrar palavras. Em realidade, nós devemos ler o mundo. Ou deveríamos… Em tal contexto, a escola é uma construção humana que precisa sensibilizar o estudante para que tenha competências ao ler/escrever. E tais ações demandam a necessidade de pensar!

Em resumo, o foco deste texto envolve leitura, pensamento e escrita. Atos de um longo procedimento didático que exigem tempo, profissionais dedicados e bem remunerados, honestidade intelectual, questões éticas (e, portanto: políticas, como já definiu Paulo Freire!), o gosto e o prazer de estudar (a busca), o ensino-aprendizagem (o processo) e a produção (o compartilhamento). Tudo numa perspectiva dialética com as pessoas e em diversas esferas sociais. Mas o que se observa na publicidade é apenas a questão dos resultados! Alardeados como “grandes”…

Parte da imprensa também entrou nessa: “das 55 redações notas 1000, 42 são de mulheres”. Será tão importante destacar o gênero assim? Há reportagens igualmente destacando “dicas de como fazer uma boa redação”! Não seria muito mais relevante – do ponto de vista humano e, portanto, jornalístico! – revelar os impasses de uma população pouco afeita a ler e a escrever? Afinal, este país tem milhões de analfabetos funcionais. Por si, essa situação configura uma tragédia real e insofismável. Que o leitor possa refletir: o título deste artigo, resultado do exame, prova a competência do universo escolar focando na exceção? Como situava o poeta Bilac: ora direis ouvir estrelas…

O ato da escrita eficiente – independentemente do gênero textual e da situação de comunicação na qual o usuário/produtor se encontra – não deveria ser tão difícil assim. Um aluno de ensino médio, desde o início de sua alfabetização, passou mais de uma década estudando os pressupostos da norma padrão da língua portuguesa, os quais precisam estar gramaticalmente contextualizados. Será que estão? Ou a temática de ensino é a regra pela regra, reproduzindo esquemas mecânicos e quase nunca valorizando a criatividade? E ainda: como têm sido as aulas de português? Prazerosas ou massacrantes?

Para o articulista, o ato de ensinar português deve contagiar as pessoas a se tornarem pesquisadoras! Além disso, esse ato deve ser encarado igualmente com alegria e bom-humor! Explica-se: o riso é um ato democrático, pois iguala a todos, e pode ser explorado como fator de aproximação entre o estudante e as necessidades reais do uso da língua, a qual veicula, inclusive, belezas da vida. Retomando o mestre Bakhtin: se a linguística é estética, o estudo a ela referente também deve ser! Obviamente sem esquecer os rigores racionais que qualquer construção de conhecimento exige. Mas que estejam ao lado da emoção e do prazer!

Em toda a conjuntura, a qual não se esgota neste ponto – por certo, busca-se compreender a complexidade do assunto e refuta-se o imediatismo de soluções. Nesse sentido, vale a pena sustentar um porvir diferenciado, que vá ajudar na elaboração de atos reflexivos. Em outras palavras e por fim: a esperança é de que, ao agir no entorno do que este texto apregoa, nós tenhamos, no futuro, milhões de redações notas mil! Aliás, extrapolando essa mera questão: de pessoas mil! Com autoestima elevada e, principalmente, motivadas a seguirem o próprio rumo tendo a língua como um instrumental sensível e competente de interferência na própria vida e no meio em que atuam!

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

BAKHTIN, Mikhail; VOLOSHINOV, V. N. Em: Marxismo e Filosofia da Linguagem – problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 2004.

Carlinhos Perdigao

Carlinhos Perdigão é arte-educador, músico, produtor cultural, professor de língua portuguesa da Faculdade Plus e da UNIQ – Faculdade de Quixeramobim. É autor do livro “Fragmentos: poemas e ensaios” e do disco “Palavra”. Tem formação em Letras e Administração, com pós-graduação em Gestão Escolar. E-mail: [email protected]. Site: carlinhosperdigao.com.br

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Carlinhos Perdigao

Carlinhos Perdigão é arte-educador, músico, produtor cultural, professor de língua portuguesa da Faculdade Plus e da UNIQ – Faculdade de Quixeramobim. É autor do livro “Fragmentos: poemas e ensaios” e do disco “Palavra”. Tem formação em Letras e Administração, com pós-graduação em Gestão Escolar. E-mail: [email protected]. Site: carlinhosperdigao.com.br