“– Já pensou o que pode acontecer quando voltar a Buenos Aires e continuar a escrever contra o governo?
– Tenho pensado nisso muitas vezes. Posso perfeitamente desaparecer, como tantos outros.
– E isso representaria o quê?
– Eu seria morto… o que não seria tão terrível assim. Ou seria preso e torturado… o que seria infinitamente pior.”
[Proteu, de Morris West. Círculo do Livro: São Paulo, s/data; pág. 30].
Ele não aceitava ser chamado de repentista, versejador ou poeta. Dizia ser apenas um violeiro. Ou até mesmo um cantador de viola. Só isso. Sentia-se realizado com o respeito que despertava nas pessoas, principalmente pela habilidade com que fazia vibrarem as cordas da viola amada. Costumava afirmar que era a sua pulsação sanguínea ampliada para tornar-se perceptível ao ouvir-e-olhar dos outros. Não escondia o prazer que lhe causava a arte. Simplesmente deixava que ela o possuísse. Isso lhe bastava. A sua rara verve revestia seu canto de uma poesia simples, jocosa, virtuosa. Inimitável. Inconfundível.
A bem da verdade, era ele um cantador das coisas do sertão. E nisso, conseguia ser, ao mesmo tempo, genial e genioso. Isso parecendo bem mais que aquilo. O que, saliente-se, não diminuía o carisma que sempre nutria em quem se dispusesse a ouvi-lo. Uma voz bem peculiar e uns acordes naturalmente agradáveis: isso é o que era ele. Na região, todos o admiravam e respeitavam. Defendia calorosamente as suas verdades. Expunha corajosamente as suas ideias. Duelava como poucos, quase nunca recorrendo a grosserias nem apelando para meios reprováveis. Demonstrava conhecer os seus limites e reconhecer, nos outros, as virtudes que deixassem transparecer.
Ocorre que, numa certa ocasião, alguém se arriscou – não se sabe com que intenções, embora o conhecesse e soubesse até de suas agruras – a contrariá-lo, a mexer com seus sentimentos mais arraigados, propondo-lhe um mote incitativo. Ei-lo: A PIOR SORTE DO MUNDO É MELHOR DO QUE MORRER.
Num repente, o exímio cantador de viola sentiu-se invadido por sensações experimentadas em momentos de dor, de desespero e, por que não dizer, de impotência perante “testes” a que a vida, aqui e acolá, submete o indivíduo cônscio da razão de ser da sua existência terrena.
De repente, um filme dramático invadiu a mente do respeitável cantador de viola. Um ente querido, acometido de mal incurável, cerceado da liberdade cuja conquista lhe custara tanto, dependendo da caridade alheia, até de quem lhe limpe a bunda, já não mais vive, apenas vegeta… e sofre a dor silenciosa e acabrunhante que permeia o seu particular campo de concentração, a sua antecâmara do fim que teima em não vir. Já nem chorar consegue mais, a fonte secou. Embora demonstrando conformidade, o olhar excruciante revela a amplitude do sofrimento. Isso aliado, ainda, à certeza de que, mais cedo ou mais tarde, desse mal vai fenecer. Embora, somente assim cessará a dor que, lenta e gradualmente, o vai consumindo, sem que nada mais se possa fazer para reverter um quadro tão desanimador.
Com os olhos marejados, o coração desgovernado e a alma destroçada, o violeiro extrai, então, um som triste e intenso da viola amada e produz uns versos que bem poderiam ter sido estes:
Sempre há quem pretenda impor ao repentista
Seus caprichos e desejos, seus sonhos e anseios,
As conquistas e frustrações, as ilações e devaneios…
Sem perceber que a poesia, na voz serena do artista,
É insubmissa, forte: não negligencia, não se intimida;
Mas, por ser ave canora e livre, valorosa e destemida,
Não abraça nem alberga qualquer sorte de querer.
Portanto, ora calamo-nos nós: a viola e o violeiro,
Em protesto veemente e até por entender
QUE A PIOR SORTE DO MUNDO
PODE SER BEM PIOR DO QUE MORRER!
Ato contínuo, apoiou a caixa da viola na coxa esquerda, segurou a parte mais superior do braço da amada com a mão esquerda, pondo-a na posição vertical. Girou-a um pouco para a direita, de sorte a deixar a sua parte frontal bem visível aos olhos dos circunstantes, e aproximou-a do seu peito esquerdo: lá onde habita o coração, a sede dos sentimentos verdadeiramente humanos. Devotou um olhar suave e triste a todos e a cada um dos presentes e, por alguns instantes, envolvido num silêncio ensurdecedor, permitiu que o seu espírito chorasse abundantemente.
Post scriptum:
Originalmente escrita em março de 2014, dediquei esta crônica a Cláudia Ferreira da Silva, auxiliar de serviços gerais carioca, atingida a tiros por marginais vestidos com o uniforme da Polícia Militar que, na sequência, arrastaram-na por cerca de trezentos metros, antes de chegar, já sem vida, ao hospital. (Laudo oficial: “laceração cardíaca e pulmonar de ferimento transfixante do tórax por ação perfurocortante”).
Hoje, eu a reescrevo, com alterações que não lhe alteram a essência, e a dedico à pequena Débora Lohany de Oliveira, raptada na calçada de sua casa, onde brincava, e cujo corpo em decomposição, com marcas de fratura craniana, foi recentemente encontrado em caixa de papelão abandonada num lixão.
E a morte interrompeu, definitivamente, o sofrimento extremo que a elas – Cláudia e Débora – imporia a perda da essência humana, a própria razão de viver, por todo o curso da “pior sorte do mundo”.
Alguém duvida?