A vida e suas complexidades, por Luciano Moreira (Xykolu)

“Tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro”. [Fernando Sabino, em O homem nu].

No CD-Player do carro, a voz inconfundível de Altemar Dutra: “Que queres tu de mim? Que fazes junto a mim? Se tudo está perdido, amor!”.

A luz vermelha do semáforo se acende e, reflexamente, ele para o carro. Mantendo a mão direita apoiada no volante, acaricia com a esquerda a barba que já não mais recebe os mesmos cuidados. O pensamento o transporta para bem longe dali. A alma em transe, questiona-se: “Meu Deus, o que estou fazendo com a minha vida? Que encaminhamento lhe dou, se as esperanças mínguam, se já não alimento qualquer perspectiva que lhe possa assegurar algum sentido”.

E a música continua: “Então, que queres tu de mim, se até o pranto que chorei, se foi por ti, não sei…” Pressentiu que lágrimas se preparavam para rolar pela face lânguida, mórbida e sem brilho. Embora a melancolia se lhe afrouxasse o ânimo, conteve-se, no extremo de sua sempre louvável capacidade de autocontrolar-se.

O verde do semáforo o convida a prosseguir, a ir em frente no itinerário que tão plenamente domina.

Teve, no finalzinho da tarde, a sessão de estreia com psicoterapeuta recomendado pelo clínico que cuidava de seus graves problemas de saúde, todos de manifestações recentes, compondo um quadro de angústia e desespero que o levava – em meio a enxaquecas, tonturas, perda de apetite, ânsias de vômito e insônias – a negar, incisivamente, a validade de sua existência humana, o que causava nas pessoas mais próximas um misto de comiseração e temor pelo que pudesse de tudo isso resultar.

E o analista – que recebera do clínico amigo o histórico do paciente, incluindo observações sobre possíveis causas de seu atual quadro psíquico – estimulou-o a, no divã, expor suas verdades, ou seja, seus medos e temores, suas vivências, expectativas e frustrações. Ele esquivou-se, o mais que pôde, a abrir-se completamente, adotando um comportamento extremamente reservado. Na verdade, faltou-lhe coragem para remexer o emaranhado de trilhas em que sua vida teimara em adentrar; por isso, ainda lutava bravamente para manter-se bem distante dessa cruel realidade, embora não conseguindo alcançar tal desiderato.

– E os seus sonhos? – Insistiu o analista. – Você se disporia a falar sobre eles?

– Bem, doutor. Eu tenho sofrido com dois sonhos recorrentes. – Certo de que adotara a estratégia ideal para casos do gênero, o analista ajeitou-se na poltrona, deixando transparecer maior atenção pelo que certamente iria ouvir. – Eles, a meu ver, não guardam qualquer sincronia. Parecem, inclusive, bem distintos. Num deles, eu tento sofregamente desvencilhar-me de uma nudez física, de corpo inteiro e de pés descalços até, em situações que sempre envolvem pessoas que não conheço e que se mostram indiferentes ao problema que então experiencio. Busco incansavelmente formas de esconder minhas intimidades desnudas, minhas vergonhas completamente desprotegidas. Pouco ou nada consigo. E isso me traumatiza, me apavora. Ao acordar-me, sinto-me acometido de uma sensação estranha, como se tivessem invadido as minhas entranhas.

O psicoterapeuta ouvia todo o relato atentamente e fazia anotações em bloco de papel de cor bege. Quando o silêncio invadiu o consultório, ambiente de clima ameno e iluminação pouco intensa, percebeu o alívio que parecia fazer o analisado dormir. Estimulou-o, então, a prosseguir:

– E o outro sonho…

– Não raramente, doutor, eu sonho ser um Ícaro modernoso. Eu voo mesmo desprovido de asas. Não consigo precisar como tudo isso começa e termina. Não há sequer plataforma. Nem área de pouso. Mas eu voo, sim. Como se fosse um grande pássaro, sem plumas, sem bico e sem asas. Mas com desempenho de causar inveja a muitas borboletas e colibris. E, em pleno voo, gozo o indescritível prazer de perceber quantas pessoas se mostram perplexas em face da minha atuação como insólito ser esvoaçante.

– E ao acordar-se, que sensações…?

– Mesclam-se a tranquilidade, pelo ato de voar, e a frustração, por não entender o porquê disso tudo.

– Numa perspectiva freudiana – observou o analista, após consultar o relógio de pulso e verificar que já se esgotara o tempo reservado para aquela sessão –, a interpretação dos sonhos, superada a fase da elaboração onírica, ou seja, do relato sob a censura que protege o indivíduo das ameaças de seus sonhos, consiste no caminho que nós devemos percorrer para desvendar a verdade do desejo neles contida, a essência de sua significação. De antemão, parece haver uma relação entre seus recorrentes – como você afirmou – sonhos. Não posso elaborar, já neste estágio, uma conclusão. [Embora tenha registrado na ficha de acompanhamento do paciente: PLANOS QUE TRANSCENDEM À CAPACIDADE DO PRETENSO EXECUTOR]. Prometo retomar esse tema na próxima sessão. Por favor, mantenha contato comigo, se alguma emergência se fizer necessária.

Agora, ele estava ali. No gozo de licença médica e com tratamento medicamentoso provisório que impunha repouso e cuidados especiais com a alimentação. Consumo de bebida alcoólica nem pensar.

Chegando ao condomínio residencial, estaciona o carro na vaga que lhe era destinada. Prefere, desta vez, dispensar o elevador e usar a escada de acesso aos pavimentos. No quarto andar, dá-se por vencido pelo cansaço. O elevador transporta-o até o décimo-quarto.

No apartamento em que passou a viver sozinho, tão logo se iniciara o traumático processo de separação, ressurge, mais uma vez, a dificuldade em compreender o desmantelamento de sua vida até então muito tranquila. Um casamento perfeito que, de repente, se desfaz. Onde ele teria fracassado?! Buscava, na amargura da solidão inesperada, resposta para essa nova realidade que se lhe foi imposta. Resistira tanto, desde a adolescência, a admitir o compartilhamento do seu mundo particular com quem quer que fosse. Namorar, sim; casar-se, jamais. Até que conheceu, num encontro de amigos em férias, quem considerou ser sua alma gêmea; o côncavo do seu convexo; a sua outra metade da laranja. Namoro, noivado, casamento… e, agora, a separação.

[Continua]

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.