“Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta…”
Chico Buarque de Holanda, na música “Meu caro amigo”
Todos os raciocínios partem, hoje, de um único pressuposto: a retomada do crescimento econômico.
Todos os segmentos políticos querem mais dinheiro, que somente pode vir se a economia deslanchar;
– todos os partidos políticos idem;
– todas as instituições criadas e formatadas para a manutenção do capital criam sofismas sobre a ideia do dinheiro como mero instrumento, como se fora uma faca que pode cortar o alimento que sacia a fome ou um corpo causando-lhe ferimento de morte, dependendo do seu bom ou mau uso, e com isto tornando desconhecida a essência da negatividade intrínseca ao dinheiro;
– todas as religiões querem o dízimo, que a bíblia bendiz, ainda que fale do mal representado pelo uso avarento do dinheiro seguindo o mesmo preceito conceitual equivocado do dinheiro como mero instrumento;
– toda arte é mercadoria mensurada pelo valor de troca expresso no dinheiro que a desqualifica;
– todos os trabalhadores querem mais dinheiro, e uns fazem greve por ele e outros param a greve por ele;
– todos os ditadores e todos os democratas elogiam o trabalho produtor de valor e dinheiro;
– todos nós acordamos pelas manhãs ou nos mantemos acordados nas noites pela única forma de sustentação que nos é permitida: ganhar dinheiro;
– todos os rentistas estão de olho nas bolsas de valores, em seus alugueis, na variação do câmbio das moedas que guardam sob números bancários, em cofres seguros ou debaixo de colchões;
– o crime organizado investe em armas que custam dinheiro para adquirir mais dinheiro com suas atividades criminosas;
– os políticos corruptos querem o dinheiro para o financiamento de suas campanhas, sem o qual eles não se elegem e reelegem, ou para enriquecimento ilícito pessoal; e o eleitor inconsciente aceita o favor em dinheiro ou algo que o represente como forma de obter uma vantagem imediata para um triste futuro prenunciado;
– o menino que ainda nem sabe ler estende a mão pedindo uma moeda que lhe possibilitará comprar a guloseima preferida;
– a mocinha pobre que aspira poder comprar a roupa e o tênis de grife aquiesce ao beijo fácil sem amor, mas pela necessidade do dinheiro que lhe servirá de meio à obtenção do seu desejo de consumo;
– o viciado mata e rouba diante da crise de abstenção para obter o dinheiro que lhe aliviará da crise de abstinência e lhe oportunizará se aprofundar ainda mais na escravidão da dependência;
– o cruel traficante de drogas vicia o consumidor iniciante para torná-lo cativo da compra futura em dinheiro e não sentirá nenhum remorso após a morte do seu cliente por overdose;
– a mãe trabalhadora e desempregada que vê o seu filho chorar faminto se submete a pedir dinheiro com o coração aflito num lugar qualquer e supera a vergonha de se ver, sendo apta à produção, não ter como produzir, porque o capital já tornou a sua aptidão socialmente supérflua;
– o trabalhador, sem saber porque lhe falta trabalho, engrossa a fila tortuosa e longa do mutirão do emprego clamando por obter justamente o trabalho que é fonte do capital e de todo o seu tormento;
– há fome em grandes plantações graças a uma agricultura de escala voltada para a exportação, o lucro e o equilíbrio na balança de pagamentos (leia-se dinheiro), e há terras desocupadas no nordeste do Brasil semiárido em razão de que por lá a produção de alimentos não é competitiva no mercado;
– os governantes, obedecendo às ordens do capital, descumprem os acordos internacionais dos quais são signatários em relação ao controle sobre a emissão de gases poluentes na atmosfera e outros tipos de poluições no Planeta, e que nos ameaçam com o aquecimento global em curso e já comprovado cientificamente;
– polulam favelas e guetos malformados porque o salário cada vez mais baixo ou inexistente não comporta a compra da mercadoria terra e que sobre ela se construa uma moradia digna e com infraestrutura urbana minimamente confortável;
– tanto o capitalista avarento, como o capitalista que se pretende generoso (sem poder sê-lo porque isso contraria as ordens ditatoriais do capital), enfartam ao verem que já não podem obter os lucros com seus capitais em valores e mercadorias e manterem os seus negócios e seus padrões de consumos em face da depressão econômica;
– o capitalista explorador, que apenas obedece à lógica do capital como um obediente soldado de uma guerra socialmente perdida, morre de enfarto, o trabalhador desempregado morre de fome ou de frio;
– a criança subnutrida dos países pobres e periferias dos países ricos lançam sobre todos nós aquele olhar desesperado que Van Gogh tão bem captou em suas telas, sem saber porque veio a um mundo tão miserável como o que acaba de conhecer após desembargar da gestação de um útero materno sem os nutrientes necessários;
– a mãe de um soldado morto na guerra se debruça sobre um corpo inerte e fardado, tal como as mães pretas choram seus filhos pretos e descamisados num novo massacre em uma favela qualquer;
Ufa!!!
Será que estou sendo demasiado dramático, ou será que é o dinheiro que é algo tão dramático e tão adorado como se fosse a encarnação de um Mefistófeles belo e radiante que encobre uma carcaça podre e assassina?
Observo, com tristeza, a tristeza dos rostos que se cruzam solitários nas multidões; constato com igual angústia a intolerância do seres humanos com seus semelhantes, ainda que muitos ainda conservem traços de humanidade em seus comportamentos; recuso-me a aceitar passivamente a raiva social generalizada e a falta de delicadeza.
Mas a vida é avessa ao capital e a toda a sua lógica econômica. Não somos seres produtores de valores monetários, mas seres produtores de vida e que a devem perpetuar por gerações em gerações.
Humanos é o que somos e não homo aeconomicus;
Não é justo que condicionemos a vida à um único parâmetro de relação social: a obtenção do desenvolvimento econômico.
Que se dane o PIB; o teto de gastos e o orçamento público; o Estado cobrador de impostos; o valor do câmbio; o valor das mercadorias; o mercado; a bolsa de valores; a inflação; as dívidas públicas e privadas; o trabalho produtor de valor econômico; o próprio valor econômico; e tudo que condiciona a vida à lógica histórica das relações de produção de valor, nada ontológicas.
Sou incrédulo quanto à possibilidade de superação de problemas num futuro para o qual se quer usar mecanismos errados (como os que anunciam os próximos governantes de hoje, e já anunciaram os governantes de ontem) para consertar aquilo que foi criado negativamente por estes mesmos mecanismos errados.
Não se pode querer que o pé de laranja dê caju, nem com enxerto.
Vade retro auri sacra fames (Virgílio, Eneida, III – 56-57).
Que não se dê nada a César, porque nada é devido a César; que se possa obter da natureza tudo que ela é capaz de nos dar, e que distribuamos equitativamente tudo que for produzido socialmente pelos seres humanos e para os seres humanos que ela própria criou, e que possamos chamar a tudo isto de Deus.
Dalton Rosado.