“Querer-se livre é também querer livres os outros.”
Simone de Beauvoir.
O que é que está havendo com a (outrora estereotipada) imagem de cordialidade do povo brasileiro?
Por que presenciamos tanta agressão física ou midiática anônima (ou até mesmo identificada) que representam execração moral e até ameaças à vida das pessoas?
Por que tanta intolerância com a opinião contrária, como se tivéssemos que apenas dizer amém aos que se consideram donos da verdade?
Por que assistimos à volta de posturas e usos simbólicos de insígnias como a suástica, que num passado recente representaram (e representam, ainda) a sacralização fanática de posturas de intolerância e aceitação social passiva de agressões indiscriminadas (como o envio para a “solução final” em campos de concentração e/ou extermínio, famílias judias cujo único “crime” era pertencerem àquela etnia)?
Por que surgiram tantos milicianos políticos (ou do crime organizado mesmo!) midiáticos ou em carne e osso, jactando-se de suas performances marombadas e capacidades bélicas, como o Deputado Federal Daniel Silveira?
Por que quase todos nós temos histórias pessoais ou de pessoas próximas de assaltos mediante violência e tantos assassinatos?
Não devemos atribuir tal comportamento a uma questão de índole étnica. Há algo de mais profundo incitando tais comportamentos.
Não gosto de estereótipos que classificam comportamentos étnicos do tipo “o baiano é preguiçoso”; “o carioca é malandro”, “os africanos são indisciplinados”, o “estadunidense é racista”, etc., etc., etc.
Geralmente os estereótipos são criados como forma de exaltação ou estigmatização e, em ambos os casos, preconceituosos e com objetivos politicamente definidos e condenáveis. Tudo o que se faz desconsiderando o interesse geral da humanidade, mas apenas considerando o interesse de grupos, corporativos ou partidários, nacionalistasou fundamentalistas religiosos, regionais ou étnicos, é sempre destrutivo.
O estigma estereotipado é a resultante de tal comportamento unilateral; o melhor, sempre, é a omnilateralidade.
Os comportamentos humanos são pautados por uma ambientação que lhes formata o agir dentro de determinados conceitos preestabelecidos. Não raro os grupos sociais podem agir como manada, seguindo aquilo ou aquele que está à sua frente como “condottiere”.
Não há um comportamento social preestabelecido e ditado por uma formação étnica específica, mas tudo depende dos condicionamentos sociais que pautam o comportamento social. [o homem é produto do meio, ainda que seja ele mesmo o transformador desse meio pelo processo dialético do movimento social e seus entrechoques diários].
Nos momentos de aguda crise social como o que ora enfrentamos – fruto da conjugação de uma crise do limite interno de expansão capitalista que é incompatível com a sustentação social viável, e uma crise sanitária que impede o relacionamento social próprio ao sistema produtor de mercadorias – as tensões tendem a aflorar do modo mais irracional e animalesco possível.
É o que estamos a observar no Brasil, com muita intensidade, mas também, e como exemplos de alertas, em algumas regiões do mundo de igual maneira (a guerra pelo poder na Síria, com seus 10 anos de mortes e traumas, além da emigração étnica forçada é um triste exemplo disso).
A defesa de verdades ideológicas tidas pelos seus portadores como verdades absolutas leva a um estado de sociopatia social no qual qualquer ação agressiva é justificada em nome da defesa de princípios que supostamente seriam a solução dos problemas sociais, ainda que aí estejam embutidos interesses políticos inconfessáveis, corporativos, partidários, classistas patronais ou laborais, como faces distintas de uma mesma moeda capitalista, literalmente falando.
Temos muitos exemplos de tal comportamento na atual realidade política brasileira, país que enfrenta um dos piores indicadores econômicos mundiais e sociais diante da paralisia econômica.
Temos queda do PIB, inflação ascendente, dívida pública crescente, desemprego crescente, falência de empresários (pequenos, em maioria, e grandes também), perda de renda de prestadores de serviços, e tudo isso conjugado com um dos piores indicadores de enfrentamento da pandemia com número de mortes de quase 3 pessoas para cada grupo de 2.000 habitantes, um dos mais altos do mundo, e somente comparável ao dos Estados Unidos, média ainda maior, mas que vem decrescendo.
O comportamento agressivo, reacionário, quase bélico, que nos indica um caminhar no sentido de configuração de beligerância civil acentuada, tem um nome: aprisionamento a um pensar ideológico maniqueísta conservador que não admite o fracasso de um modelo social exaurido, o capitalismo.
Admitir o esgotamento do modelo capitalista significa pensar alternativamente a ele, e isto as elites não querem;
– o segmento intermediário instruído na educação positivadora dos valores capitalistas ocidentais, dela beneficiário e formador de opinião pública, tem medo e se mantém cada vez mais aferrado aos valores e conceitos do passado;
– e o segmento dos trabalhadores somente pensa na obtenção do emprego (que não mais virá) que lhes garanta a vida, e pensa que só a volta aos tempos difíceis da vida mercantil “normalizada” (bem menos ruim do que a anormalidade atual), pode resolver a atual situação.
É o que chamo de aprisionamento do pensar, restringindo-o a uma única forma social, aquela imposta pela forma-sujeito da mercadoria, insana, lógica e socialmente destrutiva, e intrinsecamente autodestrutiva de sua própria lógica funcional.
Querem um exemplo atual: o combate insano à indicação para o Ministério da Saúde, após o fracasso retumbante de um general cujo curriculum era impróprio para a função, de uma profissional da medicina experiente: a Dra. Ludhmila Hajjar, reconhecida como médica competente pelos vários segmentos do poder.
Bastou o fato de ser querida por todos e, portanto, por segmentos políticos a favor ou avessos ao Bolsonarismo, para que viesse uma campanha difamatória pelas redes sociais, chegando ao ponto de agressões verbais e ameaças físicas à dita cuja num hotel de Brasília. (cuja equipe de segurança abortou o intento).
É assim o sectarismo ideológico: quem pode ajudar mas não corresponde ao perfil de fidelidade canina aos princípios ideológicos conservadores e reacionários exigidos não serve para ajudar.
Como bem disse Fernando Gabeira, os dois Ministros anteriores, que eram do ramo, caíram porque não obedeceram à ilogia da receita médica da cloroquina; e o estranho no ninho caiu porque aderiu à dita cuja. Este é um bom exemplo de comportamento idiossincrático.
Assim, caminhamos, como diz a pungente música do antigo compositor Antônio Maria: “vim pela noite tão longa de fracasso em fracasso, e hoje descrente de tudo, me resta o cansaço, cansaço da vida, cansaço de mim, velhice chegando, e eu chegando ao fim”.
O governo Bolsonaro que já chegou ao fim; envelheceu e definhou, tornando ainda mais insuportáveis os 21 meses que teremos de continuar suportando a sua idiossincrasia, se antes não o interditarmos por sociopatia comprovada.
Enquanto isto, hordas de fanáticos diante do clamor nacional de repulsa ao seu comportamento claramente genocida promovem a chamada “fuga para a frente”, pugnando por medidas contra o isolamento social, sem uso de máscaras mundialmente comprovadas como inibidoras das transmissões viróticas aéreas, e defendendo o enfrentamento virótico com a volta das relações de produção e comercialização como se nada importasse.
Muitos dos que assim agem têm parentes e amigos mortos, mas o aprisionamento ideológico conservador, ignorante, fanatizado, sem autocrítica possível, não os deixa pedir desculpas e adotar um pensar que ao invés de voltarmos a um passado impossível diante da dialética do movimento social, deveriam pelo menos aceitar um pensar propositivo adequado à realidade contemporânea.
A polarização entre o que aí está (eleito pelo povo com promessas que são todos os dias contrariadas pelo pragmatismo oportunista de deslumbrados com o poder repentinamente alcançado, cujo norte é o poder conservador a qualquer custo) e a socialdemocracia que apenas quer humanizar o capitalismo esgotado, representa uma falsa dicotomia, vez que são galhos de uma mesmo tronco de árvore: o modo de produção de mercadorias.
A agressiva e reacionária postura que está nos levando a um confronto perigoso, que pode resvalar para uma guerra civil, caso não adotemos medidas de suprimento das necessidades sociais cada vez mais acentuadas, tem explicação: a fidelidade canina e fanatizada ao aprisionamento ideológico conservador, agressivo e reacionário que se acha dono da verdade.
A solidariedade em grande escala nacional é incompatível com o interesse do capital e do Estado que lhe serve, e que priorizam a economia em detrimento da vida. É isto que neste momento, deve ser o centro do debate nacional.