O presente texto é uma reflexão e um diálogo com o livro “O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos”, escrito por Fabio Luis Barbosa e Daniel Feldmann e publicado pela Editora Elefante no final de 2021. O diálogo será desenvolvido por meio de dois artigos, e espero que possa contribuir para instigar o desejo dos leitores para a leitura do livro e construir com os autores uma troca de ideias sobre os horizontes políticos latino-americanos e, mais especialmente, do nosso país.
Meu primeiro estranhamento com a leitura do livro se deu com o uso da expressão “certo no errado”, logo na apresentação da obra. A expressão aparece como sendo o fundamento ético que baliza a ação da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo. Penso que essa expressão, que vem como orientação do cristianismo para os seus seguidores para serem fermento no meio de uma massa de pecadores, foi também utilizada no Brasil antes do PCC por grupos revolucionários após o Golpe Militar de 1964 para justificar ações de guerrilha urbanas, como assalto a bancos para compra de armas e financiamento do movimento, mas tentando deixar claro para a população que não se tratava de ação de bandidos ou de terroristas, mas de ação política revolucionária contra a ditadura e o imperialismo norte-americano. Logo, tratava-se de uma ação conjuntural em resposta à violência do Estado, não se tratava de um procedimento cotidiano e permanente.
Que as facções criminosas tenham seu código de ética, que pode ser usado para coesionar e orientar o comportamento de seus membros e respeito à hierarquia interna, é um fato que se pode constatar, mas isso não implica que na expressão certo no errado “[…] se assenta a legitimidade da organização”. A ação do PCC é criminosa e não é legitima. A facção não é uma empresa, mas faz parte do mercado; um mercado ilegal que mobiliza muito dinheiro e, por conta de ser ilegal, torna os produtos que circulam (drogas, munições e armas) bem mais valiosos. No mercado ilegal a violência é agregadora de valor.
O segundo estranhamento ou dificuldade de entendimento foi a afirmação de que o “pano de fundo de ascensão da ação do PCC foi nos anos de 1990, quando luziam as promessas de democracia e cidadania iniciadas pela Nova República”. Não ficou claro qual a relação? Todavia, minha percepção é a de que a chamada Nova República foi um instrumento de efetivação da “transição lenta, gradual e segura” negociada entre militares, empresários e políticos da antiga Arena e de parte do PMDB. Nesse sentido, entendo que a Nova República teve o início de seu fim com o movimento por uma Assembleia Constituinte para elaborar uma nova Carta Magna para o país, livrando-o do lixo autoritário dos 21 anos de ditadura militar e terminou com a proclamação de Constituição Cidadã de 1988.
Em 1990, o Brasil ainda vivia do entusiasmo da promulgação da Constituição de 1988 e do pacto constitucional em torno dela constituído entre os vários segmentos do país. A chegada de Lula à Presidência da República em 2003 não se deu num “horizonte associado à Nova República”, mas ao combate às desigualdades sociais causadas pelas políticas neoliberais que colidiam com os direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988. Com o golpe civil-parlamentar de 2016, quebrou-se o Pacto Constitucional de 1988, implantou-se, de forma acelerada, uma nova agenda política de reformas neoliberais (Ponte para o futuro) e abriu-se uma nova polarização entre extrema direita e esquerda e o chamado centro foi esvaziado. Assim, em 2018, Bolsonaro chegou ao poder.
Da leitura sobre a dinâmica política do Brasil pós-Ditadura Militar, acho imprecisa a constatação feita por Fabio Luis e Daniel Feldmann de que “se a sociabilidade produzida pela Nova República alimentou o caldo de cultura em que prosperaram fenômenos políticos, sociais e econômicos que a negam, é preciso repensar os nexos entre lulismo e bolsonarismo, entre Nova República e a república miliciana” (p. 13). Acho que existem muitos nexos entre o lulismo, a nova direita surgida no país e o bolsonarismo. Todavia, acho que a questão da presença das milícias e sua aproximação com a política precisa de uma explicação mais complexa, e sua existência extrapola, embora coexistam e se alimentem, a conjuntura da Nova República, o Pacto Constitucional de 1988 e o lulismo.
O nexo entre lulismo, nova direita e bolsonarismo não só entre lulismo e bolsonarismo, deve ser buscado como forma de produzirmos um maior conhecimento sobre a complexidade e dinâmica da ação política no Brasil, dos rumos que o capital, principalmente na sua forma rentista e extrativista, desenha o lugar do país no contexto da divisão internacional do trabalho. É importante observar, de forma aprofundada, a relação entre o fortalecimento dos milicianos e a fragilidade das políticas de segurança pública e da perda do Estado do monopólio legítimo da violência (Weber) e o seu papel violento, que, no Brasil, por meio das polícias militares, é o maior responsável por crimes contra negros, favelados e instituição reprodutora do racismo estrutural.
A apresentação do livro não ajuda muito o leitor a entrar na questão central do texto: “uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos”. Depois de se alongar na escrita sobre o pano de fundo da relação entre a ação ilegal do PCC em São Paulo e as promessas de democracia e cidadania da Nova República, o texto conclui que, além de repensar os nexos entre lulismo e Bolsonaro, entre Nova República e a república miliciana: “mais do que isso: quando se observam dinâmicas comparáveis no plano nacional, embora encarnados em formas sociais e enredos políticos distintos, é preciso refletir sobre o progressismo latino-americano em seu conjunto” (p. 13).
A partir da página 14, os autores se tornam mais claros e mais atraentes na apresentação do objetivo do livro: “nosso objetivo inicial é compreender como e por quê, a despeito das intenções dos governantes, a política progressista fortaleceu uma lógica econômica que aprofunda as faturas sociais que suas técnicas de governo pretendia mitigar”. A argumentação se torna mais objetiva e clara, dizem os autores: “o ponto de partida do argumento pode ser enunciado nos seguintes termos: as tecnologias de governos progressistas levaram ao limite as possibilidades de inclusão, nos marcos de uma dinâmica social que produz exclusão em escala massiva” (p. 14). Eu acrescentaria, os governos de esquerda abandonaram a luta contra a desigualdade social em troca de uma política de inclusão social (terceira via para Antony Giddens, neoliberalismo progressista para Nancy Fraser e neoliberalismo inclusivo para Fabio/Daniel) que não enfrenta os limites do sistema, o que faz com que centro, esquerda e direita disputem eleições para administrar o capitalismo. Por isso, digo que o capitalismo é de esquerda e de direita.
Após citar uma frase de Rafael Correia (Equador) e outra de Nestor Kirchner (Argentina), que afirmam, em sentido geral, que são os melhores administradores do capitalismo, Fabio Luis e Daniel Feldmann retomam ao preceito “certo no errado” para concluir, em relação aos governos progressistas, que, dizem eles: “observamos uma razão comum, que pode ser sintetizada na ideia de que o progressismo perseguiu o governo certo na lógica errada. Errada do ponto de vista dos objetivos de igualdade social e soberania que esses mesmos governos evocaram: podemos dizer que o progressismo é certo possível em um mundo errado”.
Aqui, tenho minhas dúvidas se, do ponto de vista do horizonte político, o progressismo é o certo possível ou se ele reflete uma renúncia a um horizonte utópico ou a teoria hegeliana do fim da história, por isso caiu num vale de banalidades, na disputa do poder pelo poder. Se ele não for o certo possível, está no lugar certo, no mundo do simulacro, da política privatizada e como espetáculo.
Penso que é limitado e enganador identificar as contradições dos governos progressistas no preceito moral “certo no errado” e concluir, como fazem os autores, que: “[…] podemos dizer que o progressismo é o certo possível em um mundo errado”. O que significa dizer concluir que em um mundo errado os progressistas fizeram o certo possível? Significa que não podiam mais? Será que não? Significa que foram coerentes e deram o máximo de si para o povo? Que não era possível fazer reformas estruturais antissistêmicas e eles foram, ao máximo em que podiam ir, de forma ética e compromissada com as agendas apresentadas em suas campanhas? E, afinal, foi porque fizeram o certo possível no errado que se envolveram em corrupção, tornaram-se bandidos e fora da lei como as facções do PCC? Será que estamos diante de um conjunto de oxímoros ou de uma aporia?
Ao contrário da apresentação, a introdução do livro estimula o leitor a querer ler o livro e, de um gole só, chegar ao final. Partindo da indagação se existe algum ponto de encontro entre o que acontece entre os diferentes países da América do Sul ou um fio condutor, ou, ainda, um sentido comum, os autores enveredam por uma hipótese de que “[…] vivemos um agravamento da crise social da América Latina, que se expressa politicamente no esgotamento das formas de gestão das tensões sociais prevalentes no continente, que incluem o progressismo” (p. 18).
Para os autores, o progressismo passa por um duplo esgotamento: do ponto de vista do capital (do todo), inviabilizou-se como via de gestão da ordem; do ponto de vista da sociedade (de baixo), perdeu a legitimidade que teve como alternativa civilizatória. Além do mais, em sintonia com uma tendência mundial, a América Latina vem sendo gestada pela convergência entre neoliberalismo e autoritarismo. Todavia, isso não significa que o progressismo esteja sepultado como alternativa eleitoral, mas como expectativa de mudanças. Para Fabio e Daniel, atualmente os eleitores latino-americanos raramente esperam um mundo melhor. Ao votarem, esperam evitar o pior, sentimento que identifico muito presente na sociedade brasileira, expressado na ideia de que, para eleições presidenciais de 2022, qualquer coisa é melhor que Bolsonaro.
Para enfrentar o momento de avanço da corrosão social produzida pelo capitalismo na América Latina, a direita tradicional também precisará se reinventar. Todavia, em relação ao progressismo, além da hipótese de que ele esteja sepultado como expectativa de mudanças, os autores levantam uma segunda hipótese, a de que “[…] a tentativa progressista de conter a corrosão social em curso nos marcos da crise estrutural do capitalismo implicou nos recursos e práticas, dispositivos e políticas que aceleraram ainda mais o processo e corrosão social” (p. 19), segundo dinâmica que os autores nomearam como uma “contenção aceleracionista”.
A contenção aceleracionista conduziu ao reforço dos traços socioeconômicos que rementem à origem colonial, produzindo um paradoxo: o progressismo regressivo, não a volta ao passado, mas uma integração da população ao mercado de consumo, e não como cidadãos, conformando modalidades de neoliberalismos inclusivos que aprofundaram a razão neoliberal. Portanto, para os autores, as chaves que eles propõem para examinar e compreender as contradições do progressismo e por que ele não abriu caminho para um mundo melhor são: a contenção aceleracionista, o progressismo regressivo e o neoliberalismo inclusivo. Trata-se, pois, de uma perspectiva de análise que enfatiza as condicionantes da crise estrutural do capitalismo a partir dos anos de 1970 que antecedem ao próprio neoliberalismo. Particularmente, compreendo que o neoliberalismo foi uma resposta à crise estrutural do capitalismo.
É no cenário de crise estrutural do capitalismo em que avança a dinâmica denominada pelos autores de dessocialização autofágica, ou seja, “[…] uma corrosão do tecido social produzida pela convergência entre a erosão do mundo do trabalho e a degradação dos serviços públicos estatais, que tirou o lastro histórico da utopia de uma cidadania salarial” (p. 20). A dinâmica de dessocialização autofágica é o ponto de fundo da análise dos limites e contradições dos processos políticos identificados com o progressismo latino-americano adotado pelos autores.
Onde o progressismo fincou raízes mais profundas, acreditam Fabio e Daniel, a crise convergiu, em diferentes modos, para aspectos políticos, econômicos e sociais. No Equador, a crise explodiu pela esfera social; na Bolívia, pela política; e na Venezuela, pela econômica. Nesta, “[…] a questão que se coloca é se a decomposição da Venezuela atesta o fracasso do progressismo ou a sua realização” (p. 49).
Aqui, levanto uma questão: onde o progressismo fincou mais raízes, não foi onde ele mais realizou, em algum grau, as reformas estruturais de enfrentamento à ordem capitalista? Não foi onde ele se declarou anticapitalista?
Um primeiro diálogo que podemos levantar a partir das constatações ou elaborações dos autores é o seguinte: se o progressismo, como horizonte de mudanças, está sepultado e se revela sem futuro, mas pode sobreviver como manutenção da ordem, tal fenômeno significa o fim da história? Todavia, se estamos desde os anos de 1970 num quadro de crise estrutural do capitalismo, a manutenção da ordem nos levará à barbárie?
No caso da Argentina, do Brasil e do Uruguai, os autores afirmam que, enquanto a direita troca de pele, o progressismo se revela sem futuro porque busca a impossível reedição do passado recente idealizado. No casso do Brasil, escuto petistas dizerem, diante das possibilidades de Lula ganhar as eleições de 2022: “voltaremos a ser felizes”. Todavia, se a direita troca de pele, mas numa confluência entre neoliberalismo e autoritarismo, não acabará por criar condições para viabilizar o progressismo como melhor opção para manutenção da ordem e de administração da crise estrutural do capitalismo? Penso que no Brasil, diante do mercado e da nova direita em viabilizar uma terceira via, o lulismo pode ser, também, para o mercado, a melhor opção.
E, para finalizar esta primeira parte, no caso do Brasil, quando o médico, que já produziu um monstro, reabilita-se e volta ao laboratório (poder/biopolítica), a maior possibilidade é dele domesticar o monstro ou produzir um segundo monstro? Não podemos esquecer que, para os petistas, o lulismo, que André Singer classificou como mostra de “reforma gradual e pacto conservador”, foi a realização da felicidade. Já as vítimas da Hidrelétrica de Belo Monte sabem o inferno em que o lulismo os meteu.