Uma estratégia bipartite como solução para o desemprego
Mucio Tosta Gonçalves
Luiz Gustavo Couto Gomes
Maria Gabriela Carvalho Giordani
06 de maio de 2024
Desemprego: elemento próprio da dinâmica capitalista. Mais do que assunto que apavora indivíduos e famílias, é um traço próprio da sociedade e da sociabilidade capitalistas. Por isso, deve ser levado a sério e exige soluções convenientes e duradouras.
Consideradas as diversas abordagens teóricas em Economia, ele pode ser descrito como friccional (dado o “desencontro” entre oferta e demanda de força de trabalho), conjuntural (em função da falta de dinamismo da economia), ou estrutural (como decorrência de transformações produtivas que afetem a oferta e a demanda da força de trabalho, de alterações demográficas e/ou, ainda, de mudanças institucionais).
Evitando simplificações do corpo teórico próprio dos economistas, é melhor considerar que o desemprego é próprio da dinâmica da acumulação capitalista. Portanto, longe de ter relação com vontades individuais, ou de ser uma situação involuntária do ponto de vista macroeconômico, resultante de expectativas que inibem as decisões de gastos dos capitalistas, ele é produto da forma como a força de trabalho humana é tornada mercadoria.
Seguindo o argumento marxiano, as pessoas que trabalham e vendem sua força de trabalho como mercadoria são submetidas a um jugo que imprime obediência a um modo de vida que afeta seus corpos e mentes, cotidianamente. Organizada desta forma, a vida de quem depende de um emprego para (sobre)viver contém um aspecto alienado.
Isso significa que quem vive do próprio trabalho na sociedade capitalista, por não possuir os meios de produção, não decide o que produzir e nem como produzir o que produz. Da mesma maneira, quem trabalha não controla o que ocorre com o produto da sua atividade laboral. Por isso, a cooperação entre aqueles/as que vivem do trabalho não é gerada espontaneamente e a competição e a indiferença mútua tornam-se formas comuns de relacionamento.
O desemprego é parte desse universo. Não só é resultante da propriedade privada daqueles meios de produção, mas, da falta do domínio do/a trabalhador/a sobre os seus recursos mais pessoais, físicos e intelectuais. Como mercadoria, a força de trabalho parece ser contrária a quem trabalha, uma vez que ele/ela depende do emprego para levar uma vida moldada pelo desígnio da reprodução capitalista – isto é, por um movimento que não é pautado pelo desenvolvimento das melhores qualidades da espécie humana.
O desemprego é, portanto, uma das faces da forma como o emprego é constituído no capitalismo. Buscar resolver este problema requer pensar novas formas de organização do trabalho.
Quais saídas podem ser pensadas para que isso ocorra, então? A que prevê que o problema deve ser resolvido pelo “mercado” não é mais do que assombro de uma ciência econômica ortodoxa e dogmática, presa ao pressuposto do individualismo como método. O equívoco da tese reside em não reconhecer que, no assim chamado “mercado de trabalho”, existe uma desigualdade estrutural de poder entre quem vende e quem compra a força de trabalho. É uma resposta, pois, que leva a lugar algum, “tapando o sol com a peneira” …
Outra saída é a de deixar o “governo” resolver, por meio de políticas e estratégias de geração de emprego e renda. As distintas formulações de tais políticas e estratégias incluem a qualificação e requalificação profissional, a formação do/a trabalhador/a como gestor/a de negócio próprio, a oferta de linhas de crédito para financiamento de empreendimentos de trabalhadores/as e, finalmente, o incentivo ao associativismo e ao cooperativismo.
São duas as vertentes que aqui se encontram: a do estímulo à capacitação de indivíduos, sem considerá-los como membros de uma classe, e a do estímulo ao empreendedorismo (sobre o que falaremos noutro artigo). Em qualquer das duas, a dimensão saliente é a do tipo de concertação que se busca promover: a que valoriza o contrato individual ou a que premia grupos e “seus” interesses, naquilo que vem sendo chamado de estratégias neocorporatistas.
A opção de transferir o controle e o comando das estratégias de produção de emprego que interessem imediatamente aos/às que são donos e donas da força de trabalho, os/as que vivem do seu próprio trabalho, não está colocada em nenhuma das saídas anteriores – a não ser, minimamente, no caso de políticas governamentais de promoção de uma economia solidária – as quais, por definição, não são revolucionárias.
É possível vislumbrar outra opção, além das anteriores? Não se trata, que fique claro, de buscar terceiras vias, por suas naturezas intrinsecamente complicadoras do acordo social…
Penso em experiências que, envolvendo o chamado “terceiro setor” e empresas, pode apontar para um caminho bipartite. Não se trata de uma via revolucionária, que romperá finalmente com a forma elementar da organização do emprego capitalista. Na verdade, é um tipo de saída possível porque pode incorporar elementos de economia social, ou uma economia onde as pessoas contam.
É saída difícil de ser trilhada, mas, possível, uma vez que tem potencial de contribuir para transformar a estratégia do emprego em organizações empresariais de pequeno e médio porte, tidas como grandes empregadoras.
Um exemplo disso é o “Projeto Aracê”, iniciado em 2007 pela Vina Gestão de Resíduos Sólidos e Locação de Equipamentos, empresa do ramo de gestão de resíduos sólidos sediada em Belo Horizonte. O Projeto tem como objetivo incluir pessoas em situação de vulnerabilidade (especialmente aquelas saídas da situação de rua, as usuárias de serviços públicos de saúde mental e as egressas do sistema prisional) por meio do emprego com vínculo formal (para uma análise mais detida do Projeto, consulte https://vinaec.com.br/2023/06/um-livro-ao-contrario/).
Com o “Aracê”, a empresa realizou a contratação de 29 pessoas, por meio de uma articulação com Organizações Não Governamentais, tendo como diretrizes a promoção de condições de trabalho legais, com salários apropriados (segundo os acordos sindicais), e a criação de mecanismos que permitem a constituição de reputação para quem trabalha.
Para a empresa, o número de empregados considerados vulneráveis que foram contratados é pequena. Para a sociedade, é menos do que ínfima… Ademais, das pessoas contratadas, apenas duas estão ainda vinculadas à empresa, uma das quais após saídas e retornos, inclusive da prisão. Por outro lado, o tempo médio de permanência destas pessoas no emprego foi de 1,6 ano, maior do que o ocupado por mais da metade dos trabalhadores brasileiros.
O importante da experiência, de fato, é que ela está assentada num acordo entre uma empresa com uma visão de corresponsabilidade e agentes de organizações sociais expressivas, como os de catadores e catadoras de materiais recicláveis, da população em situação de rua e de usuários de serviços públicos de saúde mental. Esta é uma combinação que não está assente em soluções de mercado e nem em estratégias estatais. É também, seguramente, uma combinação que encerra conflitos, dadas as contradições entre premissas e expectativas destes atores. De toda sorte, parece um protótipo de um modelo alternativo.
Por que? Considerando a condição do trabalho e do emprego no capitalismo, esta é uma saída centrada no trabalho e no respeito às condições de quem trabalha e depende do trabalho para viver. Assim, ainda que não revolucionária, é uma saída no mínimo digna para quem vive do seu próprio suor e sofre múltiplas exclusões sociais.