ultimamente em pleno carnaval”
(Escravo da alegria, Toquinho e Vinícius)
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Era a segunda-feira do carnaval de 1978. Eu, que aos 28 anos sempre passava os carnavais em Salvador, naquele ano fiquei com meu grupo de amigos (a chamada Patota Divina) em Olinda, embora sentindo saudades do cheiro do azeite de dendê que rolava na Praça Castro Alves, a praça do povo (como disse o Caetano Veloso), cujo chão é balançado pelos trios elétricos (como disse o meu amigo Fausto Nilo).
Uma parte de mim gostaria de estar em Salvador, próximo de gente famosa como Gilberto Gil, Maria Betânia, Luiz Melodia, Nei Matogrosso, Caetano Veloso, ao rés do chão e em pé de quase igualdade (já que eles estavam sempre envoltos por um séquito de admiradores).
Saudades à parte, gostei do carnaval de Olinda, com seus blocos de rua (Elefante e Pitombeiras) e instrumentos de sopro a repetir maravilhosamente os famosos e imortais frevos pernambucanos, como Vassourinhas, Voltei Recife e Banho de Cheiro. A cada um deles o povo se animava, tomava mais um gole de bate-bate com doce (a caipirinha da minha Fortaleza) ou de outra bebida qualquer e seguia em frente. Quando todos se cansavam, ouvia-se a
linda e imortal marcha do maestro Nelson Ferreira, Evocação nº 1, que fala dos saudosos carnavais da Recife de outrora.
Mas era segunda-feira do reinado de Momo e o fim de tarde já estava começando, após termos acordado depois do meio-dia, pois fôramos dormir às quatro da madrugada mais melados do que espinhaço de pão-doce.
Após três dias de folia eu já sentia um pouco de depressão pós-alcoólica que precisava ser urgentemente rebatida com mais bebida para entrar no clima. Antes da gandaia, entretanto, resolvi comprar uns artesanatos que houvera prometido a uma amiga e me dirigi para a feirinha próxima, pois no carnaval tem de tudo, até comerciantes a postos. O bloco dos garçons, Bacalhau do Batata, que sai na 4ª feira de cinzas, que o diga…
Fiquei sozinho, pois o meu grupo se dirigiu para a praça. E percebi ao meu lado, calma e anônima, uma jovem mulher (então com 36 anos, e eu com 28) que escolhia peças artesanais como eu. Ao olhar mais atentamente desconfiei que fosse Nara Leão, embora ela usasse um turbante que a tornava mais difícil de ser reconhecida, principalmente pelas mulheres da feirinha de artesanato, que talvez desconhecessem aquela grande artista.
Olhei mais uma vez e não tive dúvidas: era ela, a minha musa, a estrela do Show Opinião! E estava ali, em pé de quase igualdade comigo, um simples mortal.
Como tivesse vontade de não deixar passar em branco aquele momento único e que talvez nunca mais se repetisse, fiquei pensando em como abordá-la sem ser mais um fã incômodo. Afastei-me um pouco e articulei um modo de cumprimentar a minha diva da bossa-nova e dos afros-sambas de protesto; lembrei-me que trazia na carteira cartão de visita, que poderia ser usado caso a abordagem resultasse e sugerisse a possibilidade de um contato posterior. Quem sabe?
Criei coragem, aproximei-me e arrisquei o diálogo.
– Nara, evidentemente você não me conhece e falar comigo será mais uma das outras milhares de vezes que você tem de ser agradável a um estranho que lhe admira. Mas peço que você compreenda que, para mim, este não é um momento comum que o acaso me proporciona. Mas, pela admiração que tenho por você, eu gostaria que soubesse que vou guardar na minha memória este cumprimento para sempre, embora saiba que não é a mesma coisa para você. Basta isso. Tenha um bom carnaval!
– [Timidamente, sorrindo] Tudo bem, mas até hoje ninguém me abordou desta maneira, e certamente eu vou me lembrar deste seu jeito.
Ela se virou e já ia continuar escolhendo as peças artesanais, quando notou que eu continuava a lhe olhar calado, admirando-a, sem incomodá-la. Parou e resolveu checar o grau de minha admiração estabelecendo um diálogo.
– Pelo seu sotaque você é nordestino, mas não exatamente daqui, não é?
– Sou de Fortaleza. Nasci no Rio de Janeiro, mas vim para o Nordeste ainda criança, de modo que me considero nordestino. Você é capixaba, mas criada no Rio, portanto é mais carioca do que eu, não é?
– [Sorrindo levemente, fez um gesto afirmativo com a cabeça e perguntou] O que você mais gosta nas minhas músicas?
– O que eu mais gosto não é exatamente das suas músicas e da sua voz bem colocada, que são maravilhosas; ou da sua capacidade de tocar bem a bossa-nova ao violão e outros ritmos; e nem mesmo do seu olhar gracioso ou das suas corajosas posições de denúncia musical do arbítrio [a ditadura ainda estava viva]. O que eu mais gosto mesmo é da mensagem de tranquilidade e simplicidade que você transmite e que eu acabo de constatar serem verdadeiras.
Acho que, pela reação dela, aquilo tocou fundo a sua alma sensível, acostumada a avaliações de natureza artística. Desta vez se tratava de uma inesperada abordagem de cunho mais pessoal e intimista.
Novamente ela se referiu à minha abordagem como diferenciada das outras habituais e que a faria se lembrar das minhas palavras, dizendo: obrigada, nunca ninguém havia comentado sobre esse aspecto da minha atuação e considero isto um grande elogio.
Inesperadamente perguntou se eu estava sozinho. Ao que respondi: estou com um grupo de amigos e amigas na praça ao lado onde rola o carnaval mais animado de Olinda.
Emendei a resposta como outra pergunta: E você, está sozinha?
– Estou com uns amigos no hotel, mas resolvi sair sozinha e com este turbante para não ser reconhecida, até que meu plano falhou com a sua abordagem [sorrisos].
Aproveitei a relativa intimidade que se estabelecera e, mesmo sem muita esperança, fiz um convite para conhecer os meus amigos, na esperança de que a “ofegante epidemia chamada carnaval” (Chico Buarque) na qual todos nós ficamos um pouco mais iguais e menos protocolares, pudesse proporcionar sucesso ao meu convite.
Ela aceitou o convite com uma condição: que colocasse uma máscara que trazia na bolsa e que fosse apresentada como uma amiga do Rio que eu reencontrara do carnaval. O meu plano obtivera sucesso e a brincadeira ia começar de modo prazeroso.
Escolhemos um nome simples: Lara Cordeiro (próximo de Nara e mais manso do que o leão, combinando com seu jeito). Assim, Nara Leão passou a ser Lara Cordeiro, e lá fomos nós. Eu ao lado da minha musa sem que ninguém soubesse da importância do meu feito.
Chegando ao grupo, que já estava pra lá de Bagdácom tantas misturas de bebidas, apresentei minha amiga carioca, que não despertou maior interesse, fato que ela adorou, conforme me contou baixinho. Todos juntos cantamos A banda e algumas de suas músicas com a multidão, sem que ninguém soubesse quem ali estava. Alguém perguntou se ela conhecia as músicas, pois não acompanhava as cantorias; ela respondeu que era muito desafinada (e eu sequer podia rir da situação).
Bebemos um pouco, comemos sanduíches nas barracas ao lado, acompanhamos alguns cortejos de blocos, e percebi que ela se divertia como talvez não
acontecesse há tempos. Conversava comigo normalmente, como se fôssemos velhos conhecidos.
Esta folia durou umas três horas, até que ela, cansada e feliz, me pediu para levá-la ao hotel. Mantive a promessa de não revelar a sua identidade. Despedimo-nos do grupo sem despertar maior interesse.
Depois, no momento do “até logo”, ela pediu meu endereço, pois gostaria de me escrever. Puxei o meu cartão profissional de advogado (riscando essa identificação profissional inadequada para aquele momento) e entreguei-o. Ela me deu um afetuoso beijo na testa, já com um olhar de saudade daquela amizade de carnaval, que certamente terminaria ali.
Quando voltei ao grupo e contei de quem se tratava, ao que todos riram e disseram, dando de ombros: você nem bebeu tanto e já está bêbado?
Não insisti em explicações ao grupo, estava muito feliz para discussões e caí na gandaia.
Post script: há outra versão, desta vez agora história, na qual, receoso de mico na abordagem, deixei de iniciar a conversa com Nara Leão, afastei-me da banca de artesanato e fiquei apenas fantasiando sobre o que aconteceria se tivesse sido mais ousado.