A jovem Hollywood visitada por Blaise Cendrars em 1936, no entanto, é também uma sobrevivente que tenta se reerguer da hecatombe que se abateu sobre a economia mundial apenas 7 anos antes, quando da quebra da Bolsa de Valores de Nova York.
Para se ter uma ideia da dimensão dessa crise que se originou em Wall Street e causou efeito em todos os continentes do planeta, basta saber que em apenas 4 anos – de 1929 a1933, para ser mais preciso -, o PIB mundial despencou 15%, fenômeno simplesmente impensável para o mercado, fiel mantenedor do sistema capitalista. E nos Estados Unidos, o coração do monstro, o tombo foi ainda pior, com o PIB nominal do país sofrendo redução de 50%.
Como resultado dessa catástrofe econômica, que fez com que 40% das instituições financeiras norte-americanas fechassem as portas e o desemprego no país atingisse o inédito patamar de 25% em 1933 (antes da crise esse índice era de 4%), Hollywood se viu à beira do colapso, com a bilheteria das salas de cinema caindo de 90 milhões de ingressos vendidos semanalmente em 1930 para cerca de 60 milhões semanais em 1933, o que fez com que a indústria cinematográfica saísse de um patamar de lucro de 54,5 milhões de dólares em 1929 para um prejuízo de 55,7 milhões de dólares em 1932.
Com mais da metade da população norte-americana jogada abaixo da linha da pobreza e sem perspectivas claras no horizonte, essa jovem e quase falida Hollywood teve que usar de toda a sua criatividade e astúcia para se reinventar num curtíssimo espaço de tempo, isso estando ainda debilitada pelo período de transição entre o cinema mudo e o cinema sonoro (iniciado em 1927), onde muitos dos lucrativos astros e estrelas foram compulsoriamente aposentados por absoluta incapacidade de adaptação, afora os gastos astronômicos com que os estúdios se viram obrigados a arcar por conta das mudanças tecnológicas, não obstante os lucros que se seguiram posteriormente.
É de se admirar, portanto, que Cendrars destaque em sua narrativa o fato de que, passados apenas 7 anos do início daquela crise de dimensão bíblica, Hollywood possua mais carros do que habitantes; de fato, ele é taxativo ao afirmar que todo homem que anda a pé na cidade dos sonhos é suspeito, tendo sido, ele mesmo, parado pela polícia enquanto percorria, solitário, o trajeto entre um restaurante e o hotel onde estava hospedado.
Ao lado dessa surpreendente demonstração de riqueza em meio a uma crise ainda em curso, a juventude decantada por Cendrars no título do primeiro tópico do livro se faz presente em sua percepção da cidade, um lugar que “…contém ao mesmo tempo algo de Cannes, de Luna-Park e de Montparnasse”, constituindo-se em “…um espetáculo espontâneo, contínuo, permanente, encenado dia e noite na rua, diante de um cenário americano que lhe serve de pano de fundo”, isso para concluir, com fina ironia, que “Só nos resta lamentar não termos vindo antes, ou, ao contrário, pelo simples fato de estar aqui, de ter vindo, de viver um dia nesse ambiente de displicência e de improvisação, onde sentimo-nos extraordinariamente felizes. Pois não se vêem velhos em Hollwood, nem no estúdio nem na rua. Hollywood é a cidade dos jovens”.
Sarcástico, Cendrars cita, em determinado momento da obra, um jornalista francês que se referia a Hollywood como sendo a verdadeira capital dos EUA, o país da quarta dimensão: “Essa não é a perspectiva mais equivocada para observar a vida americana e suas manifestações tão frequentemente exageradas, quando não histéricas, que se desenrolam como num filme e que, na maior parte do tempo, parecem ter sido combinadas a priori por um diretor de cinema”.
Alguém aí lembrou de Donald Trump?…
Disposto a investigar a consistência do material por trás do verniz da “mecque du cinema”, Blaise Cendrars resolve explorar os arredores da cidade, onde se depara com o que ele chama de “Muralha da China”: os bloqueios promovidos pelos xerifes da Califórnia e a polícia de algumas cidades como Los Angeles e a própria Hollywood, bloqueios esses que visam, em princípio, “…impedir a invasão sazonal dos indigentes e vagabundos que vêm dos estados vizinhos passar o inverno na Califórnia e usufruir de seu clima suave”.
Desconfiando do discurso oficial – por si só condenável – , Cendrars percebe que, na verdade, a assepsia ostentada por Hollywood (e por outras cidades californianas) se baseia numa prática que inclui a patrulha sistemática de trilhas, atalhos e passagens ao longo da costa, assim como a vigilância das veredas, estradas e ferrovias que cortam as montanhas: “Os trens são revistados. Os vagabundos e trabalhadores agrícolas encontrados nas estradas são detidos. As famílias que viajam de automóvel são impiedosamente forçadas a recuar se o chefe de família não tiver boas razões para justificar uma livre entrada na Califórnia. Os jovens, crianças, mulheres desacompanhadas, desempregados, inválidos, doentes ou portadores de germes de alguma doença infecciosa são enviados de volta a seus amigos de origem ou internados em campos de concentração até maiores informações. Todo indivíduo suspeito é preso”.
Perplexo com suas descobertas e, mais ainda, com o cinismo e cumplicidade dos jornais locais, que justificam as arbitrariedades como sendo algo necessário para coibir a entrada das hordas de mexicanos que vêm “comer o pão dos americanos desempregados”, ele observa que “…na medida em que o front policial não toma o rumo do sul, mas é orientado de norte a leste, o bloqueio californiano volta-se na realidade para o interior do país e as indesejáveis vítimas dessas medidas intransigentes são, em 99% dos casos, ‘estrangeiros do interior’”.
Mas nem tudo na Hollywood de 1936 é aviltante para esse atento suiço de 49 anos que se encanta com a proliferação de lindas moças pelas ruas da cidade, um lugar onde “…a qualquer hora do dia ou da noite é possível ver passar belezas sensacionais de automóvel ou encontrá-las a pé, em qualquer traje, de shorts, de pijama, envoltas em seda, de vestido de noite, de capa de chuva, de casaco de pele – mas sempre com os cabelos frisados – indo às compras, sós ou em duplas, ou acompanhadas por moços elegantes, ou protegidas pelas mamães ou por alguma tia velha, ou seguidas por um motorista negro”.
“Em Hollywood, todas as ruas levam… a um estúdio!”
Movido por essa máxima, nosso personagem empreende uma verdadeira maratona de visitas aos grandes estúdios, quase sempre frustradas nas recepções, onde os funcionários são instruídos a não deixar passar ninguém que não tenha vindo com credenciais de alto padrão, principalmente se o visitante tiver aspirações artísticas: “Se você quer fazer cinema em Hollywood, venha!… mas faça-se anunciar com o máximo de publicidade, faça sensação, senão, sem pompa e aparato você não passará, pois existe o muro”, sentencia Cendrars, numa frase que soa atemporal.
Assim é que, ao chegar na sede da “Universal Films”, Cendrars imediatamente repara no texto do cartaz pregado logo acima do guichê de atendimento ao público: “Não adianta esperar. Não adianta insistir. Você está perdendo seu tempo. Carta de apresentação não resolve nada. Este lugar não foi feito para você. Não entre.”.
A mesma postura indelicada se dá quando da visita a “Paramount”, onde, a despeito da inexistência de um cartaz nos moldes da “Universal Films”, Cendrars é atendido por uma equipe que, segundo ele, “…é toda do gênero boxeador. São jovens atarracados, fortes e muito decididos. Mas não são de brincadeira. Se seu nome é Durand eles anunciam sr. Dupont, e se você pede para falar com o sr. Adam, eles o encaminham friamente para o sr. Cook.” A ideia por trás da desinformação e dos desencontros programados é desestimular o visitante, algo que não funciona com Cendrars.
Sua visita a “Metro-Goldwyn-Mayer” – ou “M.G.M”, como ele faz questão de frisar -, é particularmente interessante, pois coincide com a visita de centenas de marinheiros japoneses que, de folga, resolveram conhecer o estúdio na esperança de encontrar a “Madame Roma e o Senhor Djuiliat!”, como assinala Cendrars, para esclarecer logo em seguida que a M.G.M estava rodando, naquele momento, o filme “Romeu e Julieta”, o verdadeiro alvo dos confusos fãs japoneses. Um fato que também desperta atenção nessa história é que Cendrars assinala, sem saber da ironia do destino, que os tais marinheiros faziam parte da tripulação de um cruzador de batalha da marinha imperial japonesa, a mesma marinha imperial que, 5 anos depois, transportaria os aviões de caça que bombardeariam Pearl Harbor.
A narrativa de Blaise Cendrars prossegue, ao longo do livro, revelando fatos, detalhes e curiosidades que, aos seus olhos, envolviam aquela Hollywood de 1936, estabelecendo, pela permanência da natureza humana, muitos elos com os dias atuais, algo que o próprio escritor e artista suiço intuiu em uma das passagens da obra: ”Nada é mais emocionante para um investigador que parte incógnito para o exterior do que trazer desse mergulho uma atualidade viva, palpitante, recalcitrante, mas de significado geral. Ela é o único testemunho real que podemos dar da vida no universo, esse desconhecido”.