UM ROSÁRIO, MUITAS RUAS – Íris Cavalcante

Conheço algumas. No Rio, Sobral, Porto e Lisboa. Já ouvi falar de outras. Chego a pensar que toda cidade deve ter uma, com suas histórias, personagens e mistérios gozosos, dolorosos, gloriosos e luminosos. Mas hoje estou na rua do Rosário do centro de Fortaleza, sob um sol largo, uma rua breve que percorro de praça a praça. Encontro de Rachel a Getúlio. Entre a Igreja do Rosário dos Pretos e o Palácio da Luz, me distraio com paralelepípedos e gatos sorrateiros que habitam os porões. Um adesivo num poste e alguém garante “amarração por amor”. Dizem que há quem acredite.

Passo por um aglomerado de comércio e serviços, clínicas que cuidam do sorriso, sobrados decadentes, engraxates, pedintes, pessoas que alimentam pombos, bancas de revista fora de circulação. O dono cochila, a existência insiste. Pergunto há quantos anos ele está ali. Um bocado – ele responde.

Na rua do Rosário encontra-se quase tudo, mas não rosários. Para lá, sou levada em busca de um passado da cidade, que ainda pulsa. Século XXI e me deparo com um santuário de máquinas de escrever no número 125, um lugar meio claustrofóbico, entre poeira e antiguidades. Relíquias que pertenceram a amantes da escrita, ou a comerciantes e empreendedores de uma época. Tecnologia que pôs em movimento a roda da economia.

Em tempos de digital influencer, me encanto com uma Olivetti vermelha, amor à primeira teclada. Evoco meus ídolos da literatura e, ali mesmo, conversamos através do toque contundente que imprime palavras, enquanto escuto os relatos de um falante senhor de bigode sobre uma Fortaleza e um Brasil do passado. Um café e a conversa flui. Ele me conta sobre o Curso Andrade Lima que preparava datilógrafos para 800 toques em 5 minutos, garantia de aprovação num concurso de bancário. Não consigo avaliar tamanha destreza.

Estou diante de uma testemunha ocular da história, numa travessia de sete décadas, mas a sua compreensão dos fatos não é a mesma que a minha. Registro minhas impressões na caderneta da cronista, mais do que cabe numa crônica, e ponho-me a vislumbrar passagens sombrias da nossa história, como se estivessem impressas nas pedras da calçada.

Pego a Olivetti vermelha, que agora é minha. O uber que chega também é vermelho, como o sangue derramado pelas lutas populares. Ainda sob o efeito da conversa, quero encontrar pessoas e lembrar às novas gerações que 64 não foi revolução e que golpes marcam sempre períodos de grande retrocesso, com ressonância no futuro de uma nação.

Vejo que fatos históricos são acomodados conforme o viés ideológico de quem os assiste. Existem lados e eu sei perfeitamente qual é o meu. Logo mais, encontrarei pessoas que amo, fico feliz por estarem bem, meu jeito particular de cuidá-las. Não tenho rosário nem coroa de flores, mas quero a paz e a contemplação dessa oração. Desacelero da euforia do passeio, dou uma última olhada para a emblemática rua e sigo.

Mais tarde, imersa na inviolável solidão de meu quarto como num mosteiro, me dedico à leitura devocional de Santa Tereza D’Ávila e à reflexão sobre o Santo Rosário. Nunca rezei um. Em Tereza D’Ávila encontro: “Nada te perturbe, nada te espante, tudo passa.”

No fim do dia tenho apenas uma certeza que não se explica nos fatos recentes, talvez na fé: Tudo vai ficar bem.

Iris Cavalcante

Íris Cavalcante é especialista em Escrita Literária e MBA em Administração Estratégica. Estreou na literatura em 2003, teve publicações como autora independente, participação em coletâneas e revistas eletrônicas. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2018 na categoria poesias com o Vento do 8º andar.

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Iris Cavalcante

Íris Cavalcante é especialista em Escrita Literária e MBA em Administração Estratégica. Estreou na literatura em 2003, teve publicações como autora independente, participação em coletâneas e revistas eletrônicas. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2018 na categoria poesias com o Vento do 8º andar.