Meu bairro é um bairro periférico. Demorei muito para considerá-lo meu. No início, achava que era uma questão de não afinidade. Hoje sei que na verdade é a repetição de um padrão de “bom gosto” que não me permitia gerar um vínculo de aceitação e conexão.
Certa vez, numa aula de sociologia, estudava sobre as características do suposto Ethos formador que constituiria indivíduos socialmente bem-sucedidos ou não. Numa perspectiva conjuntural, indivíduos aptos a ocupar os postos mais favorecidos socialmente eram exatamente aqueles que já haviam nascido e se socializado primariamente em espaços já definidos como de sucesso.
A conclusão a que chegamos, em sala de aula, foi a de que até o espaço físico no qual os indivíduos se desenvolviam influiria diretamente nos postos de trabalho ocupado por esses mesmo indivíduos, no nível cultural vivenciado por eles e no volume de capital econômico que possuiriam.
Nesse momento, olhando para minha própria história, percebi o quanto sempre ocupei – por mais que estivesse naquele momento em uma vaga universitária – a posição que indivíduos das classes populares compartilham.
Me vi, naquele momento, classificada e alocada – de acordo com meu capital social, cultural e financeiro – em uma classe social específica, aquela dos operários assalariados.
Me senti sendo extremamente determinada pelo espaço social que ocupo e ao invés de me debater mantendo uma visão falsa que tinha de mim mesma até então, passei-me em exame.
Nasci e me criei na região metropolitana de Fortaleza, Maracanaú, cidade industrial. Os tipos de socialização cultural mais bem-sucedidas que recebi até a infância, período que não fazia minhas próprias escolhas, vieram do espaço escolar, este ainda visto como um meio de ascensão e transformação social. E assim eu o vi. Acreditando que os primeiros anos de defasagem de um ensino público poderiam ser sanados com a simples mudança de status.
Cresci e então me casei. Saí de Maracanaú, cidade pequena e culturalmente pouco desenvolvida, pois seu espaço era prioritariamente dos investimentos industriais e comerciais. Mudei-me então para Fortaleza, e passei a habitar outro espaço de esquecimento social, o bairro Bom Jardim.
Aqui nunca busquei criar vínculos fortes com a história e os principais aspectos que de fato caracterizam esse lugar. Percebo que por muito tempo mantive a visão do dominante. Não valorizava o bairro e consequentemente as pessoas que o habitam.
A narrativa vigente, aquela que todos os dias sai nos noticiários – principalmente os policiais –, faz subentender que as pessoas que habitam um espaço periférico são pobres por suas próprias escolhas e por tal motivo incapazes de ascender socialmente, buscando uma vida criminosa como via mais fácil. Tudo parece rondar o campo da subjetividade desses indivíduos. Logo somos induzidos a pensar como são tolas e más essas pessoas que não buscam uma melhora em suas vidas!
A verdade é que somente voltando para a sociologia, pude entender que um espaço social que desfavorece os indivíduos o faz justamente para mantê-los no mesmo lugar de imobilidade social e de mínimo desenvolvimento intelectual e cultural. Em outras palavras, se um indivíduo nasce em um meio pouco favorecido socialmente é bastante provável que sua trajetória inicial reflita o transcorrer de sua vida, pois todas as outras relações serão uma decorrência das iniciais.
Nesse ponto, a sociologia não só é reveladora como pessimista. E foi a partir desse olhar que pude finalmente me livrar de uma imagem que não correspondia à minha realidade e passei a enxergar com clareza minha origem social e o reflexo da minha história no meu próprio desenvolvimento. Essa, na verdade, foi uma tarefa engrandecedora porque passo a ver nos demais o poder de transformação e a força de vontade que cada indivíduo é capaz de abrigar em si. Não me sinto determinada pela configuração espacial que ocupo, sinto que compartilho a história da maioria dos cearenses e dos brasileiros que são esquecidos e culpabilizados por já nascerem em contextos de desfavorecimento.