Já faz um tempo que conheço Godot.
(Pausa silenciosa e demorada)
Sendo sincero, não sei quando o conheci.
Nem onde.
Nem como.
Se duvidar, nem sei se conheço Godot.
Conheço?
Mas isso não importa.
O que importa é que a história humana é efetivamente a realização de Godot, quer ele exista em si, quer não, quer o conheçamos, quer não. As classes (riso) costumaram lutar por Godot, e não contra ele.
Godot pré-moderno
Suspeito que sem Godot não seríamos o que somos.
Não foi fácil deixar a condição animal, era preciso acreditar em algo, era preciso a partir desse algo dizer quem ou o que somos.
Godot apresentou-se então como sagrado.
Nas primeiras comunidades tribais (nômades) Godot era totem.
Nas comunidades agrárias em que se produziu excedente, em que surgiu um Estado, Godot personificou-se em homem: homem e sagrado eram uma só e mesma coisa. Isso em alguns lugares e tempos, noutros havia uma distinção: homem não era sagrado, mas mantinha relações com o sagrado, e isso fazia do homem um intermediário entre a criatura e o criador, meio-besta e meio-Deus.
Nossa época possuiu um protótipo. Alguns homens antes de nós conheceram nosso Godot, mas este ainda era uma criança, ainda germinava e esteve à margem do Godot de tais homens. Tais homens foram os precursores da filosofia, da política e das leis humanas, racionais, postas em discussão coletiva – ao menos entre os seus (cidadãos).
Quando digo homem estou partindo do que fomos e somos: o homem é o sujeito, e a mulher, um apêndice, o não-sujeito. Isso é quase universal em nossa até então pré-história. Pré-história porque nunca fomos, e nem somos, a partir de nós mesmos, mas sempre a partir de Godot. Godot é o verdadeiro sujeito.
Godot, como ser de múltiplas facetas no tempo, não possui caráter único, uma identidade absoluta, mas relativa a um tempo, a uma organização social humana, embora reine absoluto em tal espaço-tempo relativo.
Todas essas facetas de Godot não possuem nem metade da força que Ele conheceu em nossa época.
Godot moderno
O Godot de nosso tempo, o Godot moderno, surge da ruptura com o Godot absoluto-transcendente medieval – nesse tempo Godot era Deus – e a partir da retomada do Godot antigo-clássico. A criança, o embrião que nos tempos antigos germinou – e até pode crescer – e que se manteve à margem nos tempos medievais, em nossa época encontrou seu verdadeiro pai, o trabalho, e não possuiu obstáculos. Estava ligada a grande máquina, nem Deus a podia parar, teve de ser uma engrenagem.
Para ser mais claro, o valor, o Godot que perpassou tímido os tempos antigos e medievais (com funções simbólicas e sacrificiais), ao encontrar-se com o trabalho na modernidade tornou-se capital, e a sociedade que se fundou a partir dele foi chamada Capitalismo.
Cristo realizou o milagre do concreto ao multiplicar pães e peixes, o valor realizou o milagre da abstração: encarnado no dinheiro, tendo o trabalho como substância e o capital como dinâmica, reproduziu a si mesmo.
O desenvolvimento técnico-científico de nossa época é produto da concorrência e da necessidade suicida que a sociedade mercantil-capitalista tem de sempre apontar para além de si mesma. Nesse percurso, o Capitalismo pariu seu próprio coveiro: a automação. Com ela o trabalho tornou-se supérfluo, e o grande mal da época contemporânea não é a exploração, mas a falta dela. Com isso, o próprio valor enquanto relação social tornou-se supérfluo e o capital perdeu sua substância, daí o papel dos mercados financeiros, do capital fictício.
Hoje, Godot encontra-se em crise. Godot enquanto tal ou Godot moderno? O Godot moderno está em fase terminal, está moribundo, não há horizontes para ele, e ele não voltará a expandir-se, pois já consumiu seu futuro enquanto crédito-dívida. O Godot enquanto tal encontra-se em crise porque somos os primeiros “homens” a terem consciência de suas peripécias e porque a mais destrutiva de suas facetas, ao deparar-se com sua crise terminal (interna – lógica – e externa – ecológica), coloca-nos duas possibilidades: a emancipação ou a barbárie.