“Passam-se os anos. A gente se gasta, floresce, sofre e sente prazer. Os anos levam e trazem a vida para a gente.” (Pablo Neruda, em Confesso que vivi).
Luminescente antes, apaga-se, agora, mais uma vela…
Uma outra, de repente, acende-se mirífica e venturosa,
Cálida, sim; álgida, também. Ora exuberante, ora singela…
Imortalidade, quero-te! Até pelo que sou: tardio escritor;
Avô e pai e companheiro. Longevas parcerias, generosas,
Nutrem-se de respeito, de compartilhamentos, de amor!
Orquídeas airosas – o meu jardim vital – odoríferas rosas!
(…)
O vento bateu na porta,
Eu pensei fosse o Luciano.
Ah, minha Nossa Senhora!
Pois até o vento me engana.
[Essa quadra, de versinhos da mais pura imaginação dele, compunha o repertório particular de cantigas de ninar do meu irmão Olavo – ele com 6 ou 7 anos; eu com 2 ou 3 –, as quais cantava pra me fazer dormir o sono pós-alimento matinal (e, assim, conceder a todos alguns momentos de sossego), com balanços bem ritmados em rede armada na área alpendrada e de acesso à sala de estar de nossa casa lá em Baturité. Consta que eu era uma pestinha. E era, sim!].
(…)
Eu era um menino levado da breca, no sentido de irrequieto, traquinas, brincalhão. Diziam até que eu me parecia com um gato, não pela fofura, até natural em toda criança bem cuidada, mas pela quantidade de fôlegos – não menos que sete –, com energia vazando por todos os poros.
Lembro-me, agora, de pelo menos dois momentos em que essa característica dos meus tempos pueris se manifestou à plenitude, expondo-me a sérios riscos e merecidos castigos.
Primeiro. Eu nasci em casa cedida graciosamente ao meu pai – recém-chegado do Mazagão – e até que conseguisse uma moradia própria, por um irmão dele, bem mais vivido e de mais posses, na rua São Paulo, em esquina oposta à do casarão encravado em terreno de frente larga e algumas centenas de metros de fundos, onde sua proprietária, dona Idelzuíte – se não me falha a memória quase septuagenária – cultivava, com arrojo e apego, além de um amplo jardim de plantas ornamentais de variadas espécies, um vasto pomar de árvores frutíferas, tais como mamoeiros, laranjeiras, tangerineiras, cajueiros, goiabeiras, abacateiros, ateiras e, lá pras margens do rio, até mangueiras, assim como, em espaço bem mais cuidado, próximo à casa, uma parreira de uvas deliciosas.
Entre os dois imóveis, a nossa modesta e acolhedora casa e o florido casarão, passava uma rua iniciada a uma quadra, em confluência com a avenida Sete de Setembro, o principal logradouro da cidade, de um lado a Tipografia São Francisco de Sales, onde se produzia o jornal católico A Verdade, e do outro, a agência dos Correios, um prédio de dois andares com linhas que lembram o estilo Art Déco, recuado, isolado, de cor cinza escuro, com pracinha à frente de sua entrada de porta larga. Após a esquina com a São Paulo, esta rua se alcantilava, tornava-se íngreme, levemente sinuosa e acentuadamente declivosa e, por isso, popularmente conhecida como “ladeira do Pompeu”, porque se estendia para lá da ponte sobre o rio Aracoiaba, erigida em propriedade da família dos Pompeus, em estrutura de ferro assentada em dois pilares de concreto – um em cada margem do rio, neste ponto mais profundo e menos largo, de que resultava um vão único –, com tabuleiro de grossas tábuas de madeira e estreita via de passagem, um carro por vez, entre fornidas grades de proteção laterais.
Passados uns dois ou três anos, os meus pais adquiriram uma boa casa, a segunda da vila à direita de quem descia a antes referida ladeira, defronte ao extenso muro que, limitando o sítio da dona Idelzuíte, alongava-se até a margem do rio, lá embaixo. Para lá logo nos mudamos, em pleno inverno. Passada a quadra chuvosa, verificou-se a necessidade de pequena reforma, basicamente a troca de parte do madeirame e o retelhamento.
No meu aniversário, dona Rosinha, minha madrinha de batismo, presenteou-me com um velocípede, de assento de madeira e rodas emborrachadas, cuja autorização para uso se restringia à parte interna da casa, cabendo aqui ressaltar a proibição expressa de saída para a calçada frontal, haja vista os riscos que ela oferecia aos mais velhos e aos mais novos – além de bastante alta em relação ao leito da rua, vários batentes minimizavam os efeitos do seu desnivelamento acentuado. O portãozinho de acesso a essa rua era a barreira que tanto me incomodava quanto me instigava a transpô-la. Consistia no pórtico da minha tão sonhada liberdade. Mas sempre havia olhos a me vigiar. E eu, apesar da minha tenra idade, sabia que seria muito difícil vencer tal vigilância. E o sonho de sonho não passava.
Em meados de junho, meu pai pôde fazer a reforma do telhado da casa. Contratou ajudantes, traçou todo o planejamento com a minha mãe, comprou ripas e caibros na serraria do seu Aloísio, compadre dele, que, com base nas medidas fornecidas pelo mestre da obra, já os forneceu devidamente aparelhados. Como os trabalhos já haviam sido iniciados, com previsão de as substituições já acontecerem no período da tarde, o novo madeirame foi deixado na calçada, ao rés do chão, junto à parede da casa, com passagem livre para transeuntes eventuais.
O movimento de entre e sai, sobe e desce, as conversas e o foco no que se fazia, tudo isso concorreu para a fragilização da rigorosa vigilância exercida sobre mim, a única criança em casa, eis que meus dois irmãos mais velhos estavam na escola. E eu aproveitei a chance, tão logo percebi-me esquecido por todos. Peguei meu velocípede, cruzei o portãozinho que, completamente aberto, não demonstrou a mais mínima intenção, o menor esforço de me deter, segui rapidamente até o início da calçada, a parte mais alta, perfilei-me no meu bólido de três rodas e parti para a sonhada aventura; e, se, nos primeiros instantes senti o prazer da liberdade, na sequência, a velocidade crescente que eu não conseguia conter rapidamente me amedrontou. Apavorou-me a iminência do desastre. Num impulso, girei o guidão para o lado da parede. O gesto brusco fez o velocípede perder o equilíbrio, adernar com violência e arremessar o condutor – eu, o gato – em direção ao chão áspero e caraquento da calçada. E aconteceu o pior: fui-me de encontro ao madeirame novo, contra o qual esbarrou o meu rostinho infantil. Por milagre, apenas o bico de gaita de um dos caibros atingiu-me o frágil supercílio. Sangue, dor, choro. Gritos, corre-corre. Primeiros socorros. Alívio, pois não havia vazado o olho. Hospital. Curativos. Injeções e unguentos. Cuidados redobrados. Compulsório recolhimento do velocípede, sem prazo determinado para a liberação. Mesmo assim, outras aventuras viriam, com certeza.
Ainda hoje a marca dessa perigosa traquinagem resiste ao tempo, recoberta por grossos pelos da sobrancelha esquerda.
Segundo. A parceria do doutor Álvaro, agrônomo-chefe do Posto Agropecuário de Baturité, lá no Coió, com o mestre Expedito, o meu pai, rendeu a implementação de vários projetos economicamente válidos. A execução de um deles, que previa a instalação, no bairro Putiú, de uma empresa familiar, de pequeno porte, destinada à torrefação e à comercialização de café, produto da fértil serra, contou com o capital do doutor e a reconhecida engenhosidade do mestre, a quem coube pôr em prática todas as etapas da estruturação física do novel empreendimento, ambientado em casa residencial locada para tal mister, na esquina da via de acesso à igrejinha de Cristo Rei, lá no alto, cujas adaptações causaram poucas intervenções na planta original, assegurada a eventual reversão de finalidade. O globo de torrefação, montado sobre forno à lenha, na cozinha; o motor a óleo na sala de jantar; o moinho no quarto contíguo; o depósito de matérias prima e secundárias no primeiro quarto; o escritório e a bancada de empacotamento dividindo a sala de visitas; a comunicação funcional entre os setores através do longo corredor. O funcionamento do globo torrefador e do moinho se dava por um sistema de correias de transmissão, popularmente chamadas de “balatas” – nome atribuído ao látex empregado no fabrico das correias –, que tinha o motor como peça central.
No dia da inauguração, quase toda a família do doutor Álvaro lá esteve para conhecer todo o projeto em pleno funcionamento. Encantaram-se ante o processo de transformação de grãos crus de café em pó marrom escuro e aromático. Alguns dos filhos do mestre Expedito também lá estiveram. Eu, com seis ou sete anos, no meio deles. E, comigo, as minhas peraltices.
Com um pulo de gato jovem, mirabolante e arriscado, saltei sobre a correia que, naquele momento, fazia funcionar o globo torrefador. O maior risco estava na proximidade com o motor. Tornei-me o único a ocupar um lugar de destaque, destinado ao operador do sistema, quando se tornava necessário mudar o processamento – do globo para o moinho ou vice-versa.
Quando o meu pai me viu ali, consciente do risco que o filho tinha corrido, após encarar-me profundamente, ao seu estilo sobejamente conhecido, antecipando, com o olhar de reprovação, a certeza do castigo que sobre mim recairia, quis saber:
– Por que só o senhor está aí?
A resposta que lhe dei prontamente, sem avaliar previamente os seus efeitos, agravou ainda mais a situação já bastante desfavorável a mim:
– Pai, é porque eu tenho pauta com o cão…
Os olhos refletiram, de imediato, a raiva que dele se apoderou. Antes que perdesse completamente o controle, ele ordenou severamente:
– Pois trate logo de usar essa tal pauta para retornar ao lugar de onde o senhor não devia ter saído. Faça isso antes que eu destrua essa pauta com algumas boas lapadas de cinturão.
À noite, já em casa, eu levei a surra a que fiz jus. Nunca mais eu quis celebrar qualquer tipo de acordo com o “tinhoso”. Deus que me livre, para todo o sempre. Amém.
“Ela está mais velha. (…) Que coisa mais espantosa, esses fios que a genética estica para tropeçarmos no caminho, a maneira como um organismo consegue viver essencialmente inalterado, e, de repente, em poucos anos, rende-se à idade.” (Michael Cunningham, em As horas).