Jules Ferry foi Primeiro Ministro da Terceira República francesa (1871/1940) por duas vezes e ministro da Instrução Pública. Exibia em seu prontuário as qualidades que ornavam muitos dos homens de pensamento da época: republicano, maçom, positivista e anticlerical. Armado dessas distinções, laicizou a escola e nela enfiou o gorro frígio republicano, dispensou os jesuítas do seu ministério educacional, tornou o ensino primário gratuito e obrigatório e criou os liceus e colégios para “jeunes filles”. Um revolucionário, dir-se-ia, para aqueles tempos incertos, espremidos entre repúblicas, monarquias e impérios. Um centralizador que fez da escola questão de Estado, modelo que atravessou os dois últimos séculos envolto pela sedução do aparelhamento estatal, aos tropeços da burocracia, sob o controle de uma “intelectocracia” ideologicamente correta, tão ao gosto dos franceses. Um cartesiano “avant la lettre”. Orgulhava-se Ferry do seu feito reformador: certa feita, relógio da algibeira à mão, informou, circunspecto, aos circunstantes: “Neste exato momento, às 8 horas da manhã, em todas as escolas da França, os alunos estão lendo um texto de Chateaubriand”…
“…a Educação básica como um todo”
Fui assaltado de estranho sentimento de perplexidade ao ler esse documento saído do forno das reformas que se aviam em Brasília. “Base Nacional Comum Curricular” é o título que lhe foi dado e traz, conforme dito na sua Introdução, a marca da autonomia desfrutada pelas esquipes que o produziram. Lê-se, aí, ainda, à título de ressalva, que a versão distribuída “não representa a posição do Ministério”. Ainda bem, diríamos, cá com os nossos botões, tocados de dissimulada incredulidade. O primeiro parágrafo da “Apresentação”, não fosse redundante padeceria de irreprimível ambiguidade. Soubemos graças a um truísmo gracioso que “a base é a base”, lá está escrito com todas as letras. E finalmente: A Base Nacional Comum “é a base para a renovação e o aprimoramento da educação básica como um todo” (grifo nosso). E conclui o texto à guisa de apresentação: “Leiam, critiquem, comentem, sugiram, proponham! Estamos construindo o futuro do Brasil”. Donde se há de concluir que as equipes formularam a proposta que não é do MEC, mas poderá vir a sê-lo. Nisso precisamente surge a primeira indagação, sobre a “equipe”.
A ampla relação de coordenadores e diretores; presidente e vice-presidentes não deixa claro se os titulares são agentes públicos, funcionários do MEC e de secretarias estaduais, designados para compor a equipe. A formação da equipe leva, contudo, a concluir-se que se trata de um coletivo de amplitude nacional, constituído por regiões geográficas e algumas secretarias estaduais de Educação em estados estratégicos. Seria, como se mostra, de fato, uma proposta nascida nas entranhas da burocracia pública da Educação.
Não vem ao caso conhecer o viés político desses formuladores, importaria, entretanto, conhecer o seu perfil acadêmico. Melhor será fugir da partidarização ideológica que poderia por em suspeita essa espontânea contribuição da qual tanto espera o Ministério. A ideia de firmar-se uma “base” curricular, reconhecidas as circunstâncias geográficas que nos tornam um imenso território, com população numerosa e culturalmente diversificada, e desassistida historicamente, sujeita à ineficiência do aparato público-estatal, promíscuo e despreparado, não é a questão central a ser suscitada pela análise desse documento.
Jules Ferry fez sucesso no Brasil, em suas inúmeras reformas do ensino público, ao longo de todas as nossas Repúblicas, tão frágeis quanto passageiras, geradas ao embalo das monarquias dos Alcântaras. As reformas de 1968, inoculadas em nossas escolas e universidades pelos governos militares, prescreviam a figura do “Currículo Mínimo”, com a sua respectiva “grade curricular”, emolduradas pelas disciplinas “Educação Moral e Cívica”, “Organização Social e Política Brasileira e “Estudos de Problemas Brasileiras”.
Uma nova “base” curricular comum e nacional
O novo modelo pretende assegurar, como o seu texto expressa, uma “base nacional comum curricular”, o que não será, convenhamos, modelagem inovadora; mesmo assim, não se o haveria de condenar por essa simples falta de originalidade. Não se há de ignorar a intenção confessada de fixar-se percentual concedido para a contribuição regional, indispensável à contextualização de circunstâncias, fatos e conhecimentos aplicados, na justa medida da distância que separa as províncias, embora representadas em comitês de especialistas designados. Essa cota, seja qual for o seu tamanho, condicionará, como parece óbvio, a construção local aos arquétipos ideológicos que foram adicionados à “base” curricular. O risco da possibilidade dessa “base” tornar-se comum reside, como se pode supor, na própria construção dos currículos é evidente. Tanto maior é o risco, na medida em que a “base” concebida e enquadrada em currículos unificados tem o marco nacional como referência. O bem e o mal são distribuídos, com indulgência equânime e sabedoria, sem a menor discriminação… A nova provisão didático-pedagógica, reunida por essa equipe traz, entretanto, novidades inquietadoras.
Muitos observadores apontaram esses desvios operacionais e foram, por esse gesto desrespeitoso, injuriados por tê-lo feito; outros, sucumbiram perante a invencível dialética dos reformadores – e, por prudência, calaram-se. Mas como vivemos em uma país teoricamente democrático e instintivamente republicano, vale a pena insistir em falar sobre essas questões que agora se postas ou repostas à avaliação dos brasileiros e não somente dos especialistas que, destes, os governos estão pletóricos.
Em se tratando de uma “base” comum curricular para todo o sistema escolar brasileiro, parece natural que se admita como razoável que as diversidades se produzam mais no campo das ciências humanas (história, geografia, sociologia, filosofia…) e de algumas linguagens (línguas modernas e antigas e suas expressões literárias) do que no campo das ciências exatas e biológicas. Aí começam os mal entendidos e é possível perceber como a ordem das parcelas podem alterar o produto… As ciências exatas e biológicas são, pelo menos por enquanto, imunes a essa invasão de controles unificadores (na antiga União Soviética e em algumas províncias americanas alcançadas pelo puritanismo religioso, a biologia e alguns tópicos contestados da teoria da evolução foram devidamente saneados em respeito à Fé e aos desígnios do Estado).
A ordem fatores alteram, sim, o produto…
Em relação ao documento ministerial, centramos nossas observações no campo do ensino da História, nos dois níveis de formação: o Ensino Fundamental e o Ensino Médio.
As questões mais complexas, associadas a procedimentos de método e de pesquisa, suas técnicas de observação, e o desenvolvimento e explicação de conceitos e de suas perspectivas, vistas sob a ótica da filosofia da História, foram agrupadas do 1o. ao 9o. ano do Ensino Fundamental. Que não seja uma incongruência, seria, pelo menos, uma antecipação inadequada no aprendizado da História. O mérito e o conteúdo dos fatos e das narrativas históricas é que haveriam de encorajar o aluno a conhecer os métodos de investigação e de localização de fontes e de registros. O conteúdo deveria antecipar-se aos procedimentos processuais, o fato ao método de observação.
No Ensino Médio, desenvolvido em três anos, os eventos e os registros surgem nos contornos da história dos homens, a narrativa dos seus feitos, a percepção das ideias e o alcance dos movimentos que abrem os caminhos da civilização. E das ameaças exercitadas pelas forças dar armas, o poder da fé e das ideologias. As origens civilizatórias de onde viemos, boas ou más, segundo a medida de cada um, o nosso patrimônio cultural, as visões de mundo, a ciência que construímos e expandimos, a nossa índole intelectual – foram enfiadas em uma caixa de Pandora como se lá devessem ficar. A esse embrulho de coisas abjetas, dominadoras, destrutivas, colonizadoras, imperialistas, burguesas, liberais e discriminatórias – deu-se o título vago de “Mundos europeus e asiáticos”, comprimidos em dezenove tópicos, a serem ministrados no 3o. ano desse ciclo. Os itens “Mundos ameríndios, africanos e afro-asiáticos e mundos americanos” totalizam 38 itens, a serem ministrados no 2o. e 3o. anos do Ensino Médio.
A Grécia e Roma, a Revolução Inglesa, a Francesa e a Americana, a Idade Média, a Renascença, e as grandes navegações foram cobertas com o véu diáfano do esquecimento, perdidas nos desvãos dos devaneios revisionistas.
A questão não se põe, evidentemente, em termos temático-contábeis: não é o número de tópicos que conta, na verdade, embora indique, dissimuladamente, a importância que lhes foi concedida. Há de se arguir, como relevante, a ordem do desenvolvimento dos ensinamentos, a subordinação dos efeitos às causas que lhe dão origem, sentido e conteúdo. Em outras palavras, o traçado da relevância dos fatos históricos e suas precedências. Causa estranheza a dimensão do espaço conferido a questões historicamente díspares quanto ao seu peso em relação ao Brasil. Não será um currículo que pretende ser de “base comum” que alterará o “DNA” das correntes históricas, sociais, econômicas e políticas, a força do pensamento e das ideias que colhemos no mundo culto, ao longo da grande aventura da civilização que ocorreu — queira ou não a geopolítica eleita–, no Ocidente, na Ásia e no Oriente Próximo.
A bacia do esquecimento e as novas intuições
África e América, africanos e ameríndios, compõem o nosso genoma histórico, é certo, e deles herdamos virtudes e limitações, as grandezas e vilezas que esculpem, com a tradição europeia, a nossa personalidade nacional e a nossa índole como povo e nação. Encontramos nessas paragens exemplos de grandeza e coragem que fortalecem a nossa fé democrática e os nossos anseios de liberdade. Mas elas não serão maiores ou mais importantes se rejeitarmos o papel do mundo europeu, as suas conquistas, o imperialismo e uma burguesia vencedora que criou, apesar disso e de tudo o mais, o mundo moderno. Não basta ignorar o capitalismo para destruí-lo e as marcas deixadas na História. As boas e as más.
As utopias que nos animam vêm de lá, como a brutalidade e as fantasias das ideologias que nos opõem; o arcabouço jurídico e filosófico que deram origem e forma às nossas instituições, seguiram caminho longo, da Grécia e Roma, passando pelos Sultanatos do Marrocos e da Andaluzia, pela França, Itália e Alemanha. Como povo, somos o somatório de muitas etnias, ainda não modelamos um ramo “brasileiro”: nossa cultura é híbrida, construída pelos afluentes de muitas matrizes. Esse amálgama de culturas e valores tão diferentes é o nosso maior patrimônio: e pela sua importância não pode ser reduzido a modelos e parâmetros ideológicos, segundo paradigmas cunhados pela estreita visão de grupos particulares.
Para não dizer que não falamos de flores: por tratar-se de um documento encomendado pelo Estado, o texto da “Base Nacional Comum Curricular” mereceria melhor apuro, um olhar dissimulado que fosse para a gramática não seria demasiado pedir. Não desmerecem as construções literárias a ação política, as imposições do vernáculo, essas questões de estilo, que a muitos parecem duvidosas e discriminatórias, atributos de um elitismo remanescente de privilégios passados…
Para encerrar, que ninguém convence ou esclarece quem não quer abrir mão de suas convicções e haveres, do bom pensar recluso e narcisista, como se haverá de discutir esse projeto? Onde estão os pedagogos que poderiam servir nessa grave interlocução? Serão os mesmos nomeados e com diploma ministerial, funcionários e assessores, consumidos nas árduas tarefas do exercício de funções públicas? Não dispomos de educadores e pedagogos “não-estatais”? Seja como for, a questão merece atenção. Ninguém brinca impunemente com a consciência dos cidadãos, nem improvisa modelos brotados de atores ideologicamente obedientes.
As utopias que nos animam e as distopias que engendramos vêm dessa matriz cultural europeia: não podem ser apagadas no recolhimento dos agentes da burocracia: os jovens têm direito a conhecê-las.