TRINDADE SANTA – por Íris Cavalcante

Desconfio que Deus seja feminino. Um Deus-mãe. Imagino o mundo povoado de um sublime amor, além do que a condição humana é capaz de alcançar.  O amor do pai, do filho e do espírito santo convergindo para o materno. Amor que cuida. Santíssima trindade feminina.

Nossas crenças nos remetem à figura masculina de um Deus. No momento em que pensamos num Deus feminino, os conservadores nos contradizem. Alguns bradam — Deus é pai!

Já diziam para as minhas ancestrais e elas passaram geração a geração. Aquelas que prepararam o território para a minha chegada. Uma travessia de milhares de anos, lutas e dores para que hoje eu esteja aqui, subvertendo convicções e ousando dizer que Deus é mãe. Sem medo do inferno. Sendo feliz.

Sei que Deus não tem gênero. Deus está muito além de classificações. Ele pode ser um poema, um vento, um mendigo, uma andorinha, uma esperança. Tudo o que possa despertar o melhor em nós. Mas a força que recebo dele tem ascendência materna. Acolhimento e afeto somente possíveis às mães, essa entidade controversa e sagrada que habita o imaginário coletivo, às vezes como heroína e às vezes como a mais equivocada dos humanos. Com uma infinita capacidade de absorver culpas, justificar erros alheios, e uma disposição inigualável ao zelo, ao amor e ao perdão. Próximo ao divino.

Parece até que Deus e as mães existem para assumir as culpas pelos erros da humanidade.

— Foi a vontade de Deus! Mas Deus não move moinhos para que o mal aconteça.

Não quero nenhuma rudeza. Deixo-a para os ímpios. Quero a oração do amanhecer, a meiguice, sensibilidade a mil, nervos aflorados, hormônios em mutação, regras que descem e que cessam, apetite voraz, lábios cor de carne num sorriso guardado para quem eu amo.

Vem! O meu sorriso está nu. Vive e morre com o meu sorriso. Só assim valerá a pena ter um sorriso para dá-lo a alguém. Ao final de tudo, comparamos os sorrisos e vestimos o que melhor nos cabe. Assim me reconheço: seletiva, feminina, bendita, profana, densa, intensa, tensa, louca e lúcida.

Louvada seja a mulher entre suas iguais, a carregar o imenso fruto de suas gravidezes, de seus amores ou equívocos, a persignar-se em nome do pai e do filho e do espírito santo. Mas sabemos: é a mãe quem roga pelos pecadores na hora da morte. E que o futuro que nos chegue como produto disso tudo seja feminino.

Irmandade feminina. Trindade santa. Mulheres que se dão as mãos e atravessam juntas os abismos dessa luta desigual. E quando feminino e masculino se estendem um ao outro, se compreendem e se amam, amor sensual ou fraterno, imagem e semelhança, dá-se como concretizada a igualdade que buscamos, desde a nossa ancestralidade.

Iris Cavalcante

Íris Cavalcante é especialista em Escrita Literária e MBA em Administração Estratégica. Estreou na literatura em 2003, teve publicações como autora independente, participação em coletâneas e revistas eletrônicas. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2018 na categoria poesias com o Vento do 8º andar.

Mais do autor

Iris Cavalcante

Íris Cavalcante é especialista em Escrita Literária e MBA em Administração Estratégica. Estreou na literatura em 2003, teve publicações como autora independente, participação em coletâneas e revistas eletrônicas. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2018 na categoria poesias com o Vento do 8º andar.