Todos os olhos no câmbio, no juro, na Pib, no déficit…e a coesão social, hein? por Osvaldo Euclides

Quando ainda não havia economistas e não havia ‘mercados’, os estudiosos eram apenas filósofos, na melhor acepção da palavra, amantes do conhecimento, buscadores de compreensão. Ocupavam-se de entender o mundo, a organização da sociedade e de apontar o que e quem representavam e o que diziam suas estruturas. Penetravam cavernas escuras de ignorância, sacrificavam uma vida inteira em observação e pesquisa, escreviam de maneira farta, tentavam explicar e, por mais que fosse quase impossível, se fazerem entender.

É do futuro que se olha para o passado e se diz ‘fulano e sicrano eram economistas’, beltrano foi o primeiro, aquele é de centro, o outro é de esquerda (normalmente ninguém se aceita como de direita). Então, sua obra é examinada em toda sua extensão e em toda a sua profundidade, sempre por outros, digamos, ‘filósofos’.

Neste momento, algum intelectual ou algum grupo mais afinado com esta ou aquela tendência política ou cultural, seleciona (entre todas elas) as ideias do autor que mais combinam com o que esse intelectual ou esse grupo pensa e acredita ou quer fazer prevalecer. Nesse laboratório, depois de entrar, extensa e profunda, a obra desse autor sai para a sociedade reduzida e simplificada, colocada em um pequeno tubo, rotulada e transformada num samba de uma nota só. Karl Marx é comunista e quer o proletariado no poder. Adam Smith é um liberal e quer a mão invisível no poder. Keynes é um intervencionista e quer um Estado exercendo poder… E isso (essa simplificação exagerada) não é necessariamente errada, negativa ou mal intencionada, embora seja, eventualmente, pouco inteligente ou esperta demais, ou cada uma das dessas coisas.

Numa visão generosa, esse rótulo poderia fazer o papel de isca para atrair novos estudiosos, novos leitores capazes de enfrentar o desafio enorme de ler e de entender a produção escrita desses pioneiros e desbravadores. E, desafio ainda maior, contextualizá-la, interpretá-la, traduzi-la para nós, os mortais comuns, ensinando como usar esse saber para entender o mundo e perceber o jogo de interesses e de poder. Aquilo a que se chama hoje de “ciência econômica” é um exemplo do que de fato foi a ciência econômica. Toda a leitura e toda a interpretação dessa produção abrangente e profunda está se reduzindo a dogmas, a dicas, a falsos consensos, a rótulos que mais confundem que explicam. Manipulam, mais que libertam.

Alguém devia estar fazendo esse papel (ler, traduzir e democratizar esse saber). Seriam os intelectuais? Seriam as universidades? Sim, mas não só eles. Esses dois atores são decisivos, mas não suficientes. Não adianta só formar economistas, porque o problema social transcende o dinheiro. Não adianta só formar médicos, porque a questão da saúde tem muitas raízes e desdobramentos fora da medicina. Do jeito que a guerra não pode ser entregue aos generais, a economia não pode ser entregue aos economistas ou aos ‘economistas’. Outras instituições teriam papel também decisivo, mas não o exerceram, não o exercem. O Parlamento e a Imprensa se omitiram, ou não foram capazes, ou se submeteram à simplificação, ou aderiram a interesses, escolha. O debate, quando há, é muito limitado.

O fato é que os séculos se passaram e a especialização das funções sociais e a defesa radical (quase fanática) de interesses fragmentaram a sociedade de tal forma, enfraquecendo-a, que foi fácil, há algumas décadas, para o poderoso, unido e articulado mercado financeiro assumir o centro e o controle do debate público. A Universidade, os intelectuais, os governos eleitos, a Imprensa e o Parlamento deixaram-se diminuir. O verdadeiro saber, a sociedade e a democracia ficaram mais pobres. O mercado financeiro ocupou o espaço de poder que antes era da economia mais ampla (desenvolvimento para todos – o Nobel tende a premiar mais estudiosos das finanças comportamentais do que da economia política), submeteu o estamento político a colocar a agenda do mercado como prioritária, misturou as questões sociais com as restrições de ordem orçamentária, colocou a cultura sob a dependência do patrocínio empresarial, desvirtuou a democracia representativa.

Essa virada foi feita nos anos 1980, exatamente depois de três décadas de sadio desenvolvimento econômico com conquistas sociais (leia-se o que aconteceu na Europa entre 1945 e 1975, a construção do bem-estar social). De lá para cá, esse foco só se fecha, a luz diminui, a escuridão se aproxima. Enquanto a riqueza se concentra e a desigualdade começa a sufocar, a violência só aumenta. E a coesão social vai se desfazendo.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

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Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.