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TODO ARTISTA É UM ARTISTA DA FOME QUE NINGUÉM PERCEBE

O espectro entediado do mundo sem teto. A obra de Eduardo Francelino (até agora). Texto XVI. Aforismo XCIV.

É inescapável: não é nenhum tipo de romantismo que está em jogo, ou no final das contas é sim, o romantismo piegas, talvez, da história sentimental a mais manjada. E olha que está naquilo que podemos chamar a nossa profissão de fé: o artista está condenado a não ter a sua obra minimamente conhecida, se for conhecida não será compreendida, se for compreendida não será aceita, se for aceita não lhe renderá nem a fama nem a fortuna – se lhe render a fama e a fortuna, após a aceitação, a compreensão e o reconhecimento, há a interferência de algum demônio, alguém caiu em tentação. É inevitável que os que permanecem fiéis a si mesmos e, assim, famintos, sedentos, solitários, loucos e desabrigados, podem sentir uma ponta de inveja daqueles que se venderam já não tanto porque se venderam, mas porque alguém quis comprar o seu passe. (Há artistas célebres que reclamam porque a crítica ligeira de jornal fala mal deles e das suas obras, gente esquecida de que da maioria dos artistas não será dito em palavras impressas absolutamente nada.) A desistência é maior tentação quando a continuidade se mostra cada vez mais inviável e sem sentido. Tratam a desistência de Rimbaud em relação à poesia, do seu quase desprezo, ou já desprezo, até mesmo pelo próprio talento, como a um grande poema final que se desse sem palavras, ou como uma renúncia espiritual às avessas que levasse o homem a abandonar toda veleidade do espírito e abraçar radicalmente a materialidade mais obtusa das coisas. E, afinal, no duro, ninguém crítica quem muda os rumos da própria vida em nome do dinheiro, ainda que só o faça aparentemente, como pode ter acontecido ao próprio Rimbaud (quando se não me engano Racine foi chamado para um cargo público de título e nomeada, ele largou sua produção teatral, e nenhum teatrólogo contemporâneo seu o criticou: também eles concordavam que peças de teatro, mesmo tragédias, não eram um tema e uma ocupação digna de homem de estado). É preciso ser forte, irmãos e irmãs, meninos e meninas, para encarar a constante suspeita de que um certo talento pode nos levar à miséria e à insanidade; as lutas que vencemos nunca têm testemunhas; como os santos e os profetas, na evolução espiritual só ganhamos o que a própria evolução espiritual oferece, um pouco com a impressão de que não é nada (dos santos e dos profetas talvez não fosse inusitado pensar que nunca foram nem conhecidos nem compreendidos nem aceitos em momento algum: muitos que são conhecidos como santos podem não ser mais que aproveitadores convenientes que tomaram o lugar dos santos verdadeiros). Ainda que não seja porque falta o dinheiro, ainda que não seja porque um tolo desejo por fama não foi atendido, ainda que seja apenas pela loucura típica da conclusão da obra, pelo alcance de um êxtase de perfeição que ninguém nunca sabe dizer nem qual é, como é e nem se existe de verdade, mas que faz em algum momento até mesmo que se deseje diretamente miséria e loucura e privação (se não é essa no final a verdadeira obra de arte), ou ao menos que perigosamente se deixe de lado as preocupações normais de quem é forçado a pensar no sustento – em algum momento dessa aventura perigosa podemos perceber que fomos longe demais para descobrir que a sombra tem cores. O mundo das coisas que são apenas o que são e parecem ser apenas o que parecem, se muito, é claro, não dará mais que um alívio, se der ao menos o alívio. O que é mais forte, o que fala mais alto àquele que desiste de algum plano de grandeza ou no final foi forçado a desistir, o alívio de quem pode tirar sapatos apertados, ou a culpa de ainda se andar calçado quando o mais digno para o espírito era que se andasse de pés nus e que nada interrompesse a caminhada? Décadas cavando minas e sonhando o ouro grande que nunca veio: desistir significa pensar que a grande sorte pode estar a um golpe de picareta de distância, se não se pensar que se pode ter cavado a vida inteira na direção errada. É quase impossível pensarmos que a mina estava exaurida. Um dia pode ser que a arte já não faça mais promessas; a mera vida não vai cumpri-las no lugar. O medo da loucura deveria passar, mas apenas se transforma. Cada dia o mais cotidiano tudo que podemos fazer é nos perguntar se no final não aceitamos uma loucura mais branda e socialmente viável. Já pensei, iludido e esperançoso: em algum ponto a história da arte atingiu um novo iluminismo e um novo patamar democrático: enfrentar o medo da loucura e da sanidade, o medo do prato vazio e da mesa farta, e paradoxalmente o medo até da própria mediania, eram coisas do passado, que a melhor arte, aliás, podia andar mesmo a braços do mais rigoroso equilíbrio mental. Não sei se fui mais tolo ao acreditar na ilusão ou ao lhe enxergar a beleza. Pois: não, não se faz essa coisa chamada arte sem arriscar o sacrifício de um pâncreas ou de um fígado, considerando, aliás, que por si só o álcool não faz gênios, e que o sacrifício não terá nunca uma recompensa óbvia. E o que parecer uma recompensa sutil e subjetiva pode não ser recompensa nenhuma. Restamos, no máximo, palitos queimados conscientes da chance perdida e do carvão em que se tornou o corpo, o corpo, pobre corpo, que sob tantas camadas de educação pode ser que nunca atinja os seus potenciais biológicos mais simples, que pode ser que nunca chegue a ser um conhecido de si mesmo, uma vida em potencial que se deseja sem nunca se poder saber ao certo qual seria. Pode ser que em alguma hora olhemos os próprios cães e sintamos uma nostalgia, e daqui se pode tirar uma definição: o artista é apenas alguém que em alguma medida pode desejar uma vida que não lhe cabe, como acontece com quase todo mundo.

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