Empregada na medicina para identificar as ocorrências de erros cometidos no decorrer dos procedimentos hospitalares, a expressão “adverse events” está associada, em nosso país, às elevadas taxas de mortalidade dos pacientes. “Evento adverso” é o episódio aparentemente inesperado, proveniente de erros, da carência de meios e de habilidades, de hábitos e negligência, tudo, enfim, que sai fora do padrão estabelecido de diagnóstico e tratamento – e possa trazer algum dano ao paciente. Inesperado não é, pois na maior parte dos casos esse evento resulta de processos mal encaminhados ou da inépcia ou relaxação de quem os conduz. 40% dos pacientes que passaram, no Brasil, por hospitais foram vítimas de eventos adversos. A revelação estarrecedora: mais de 90% dos casos de infecção estão associadas à falta de asseio das mãos, e dos instrumentos manipulados nos serviços de enfermagem.
Vali-me dessa imagem expressiva, revelada em estatísticas do atendimento médico-hospitalar, para dela extrair uma ilação que se aplica com propriedade ao sistema político brasileiro, mais precisamente ao “processo” político, dada a ausência de práticas seguras que possam impedir eventos políticos adversos, suscetíveis de porem em risco o equilíbrio democrático, as instituições e o exercício do poder do Estado. Entendidos como episódios casuais, na medida em que poderiam ter sido previstos, controlados ou simplesmente evitados, os eventos políticos adversos punem indistintamente a sociedade, com mais rigor o patamar inferior dos assalariados, das vastas camadas de desempregados e do “lúmpem-proletariado”, desvalidos dos partidos e dos agentes do poder e sacrifica a classe-média. Pois bem, e o que são, então, nessa ordem trágica de ideias, os eventos políticos “adversos”? Por simples isonomia com o universo médico, seriam os erros praticados pelos manipuladores do aparelho de governo, as omissões, a negligência consentida, o “animus burocraticus” que faz da gestão pública um labirinto de inépcia e conveniência, e a torna instância auto-reguladora de suas próprias falhas, infensa aos procedimentos e padrões inspirados nas regras, na ética e na ordem constitucional. Não foi o que ocorreu conosco após a virada do ano, quando, nada mais que de repente, nos tornamos pobres? O Estado minguou, a fartura de benesses sumiu, o assalto às contas públicas e ao patrimônio e ao erário foi banalizado pela explicação da “necessidade social”? Os processos desencadeados pela “nova matriz macroeconômica” e um sistema político anárquico determinariam, como se viu, a acumulação de conflitos em dimensões múltiplas, que se tornam, como mostra o cientista político Sérgio de Abranches, precariamente contidos pelo pacto mais genérico de mudança política. O quê fazer como estratégia voltada para a convergência política em um país cujo sistema político se esgarça na fragilidade de um multipartidarismo de conveniência (chamado cavilosamente por alguns hermeneutas de “presidencialismo de coalizão”), com 36 partidos e uma legislação eleitoral licenciosa e tolerante? Como não temos o hábito de nos rebelarmos contra a ordem instaurada (legal ou não), afogamos a indignação cidadã, e procuramos, como o fazem alguns políticos mais sensíveis aos alentos do poder, os caminhos de uma “trégua”, o acordo em torno do qual se festejam a paz de pretensões comuns e de interesses solidários. A corrupção corre por fora dessa raia, afinal, não é um mal em si própria, há quem nela enxergue uma possibilidade “democrática” de socialização dos bens públicos para a geração de melhores oportunidades privadas, afinal os limites do Estado correspondem aos anseios dos que nele mourejam…
O que se vê como articulações da estrutura do processo político nosso de cada dia? A fragilidade dos cordões governamentais, a inépcia institucionalizada na base de acordos partidários de coalizão de finalidade, a instabilidade das instituições, populismo oportunista que encanta os desprotegidos e lhes tira a insatisfação com benesses transitórias. A indignação cheia de temores da classe média, a indecisão prudente do empresariado e a perda do poder pelos que o detêm compõem um quadro grave que, em circunstâncias que tais, desencadeariam desequilíbrios fatais em qualquer país.
A exemplo de alguns experimentados marujos que se amarraram ao mastro da nave em risco, como Ulisses o fez, para não ouvir o cantos das sereias, sou dos que fecharam os ouvidos e os encheram de espinhos para escapar aos encantamentos do otimismo; só assim é possível procurando o que muitos não querem que possamos ver. Tento, por meio dessas artes da dissimulação vislumbrar como haveremos de sair desse imbróglio, evento adverso típico. Só por via de uma rebelião nas vertentes do poder (seria o tal golpe “democrático” verberado pela retórica presidencial?), já que não temos o hábito de nos rebelarmos fora dele. Ou os políticos se rebelam e mudam alguma coisa ou ficaremos sangrando, na ilusão de que somos cidadãos em uma república democrática (de fato, não importa saber o que somos, mas sim o que pensamos que somos…). Todas as revoluções, movimentos ou golpes realizaram-se à sombra do poder, no Brasil, mesmo sob o domínio de impulsos de personagens singulares, como ocorreu na Proclamação da Independência e da República. Movimentos patrióticos, deflagrados por políticos, por eles manipulados, cooptados pelos partidos, nada se passou fora do girau político, mesmo quando as armas tomaram, transitoriamente, o lugar das leis para elaborar uma nova ordem “legal”… Diante de tantas possibilidades, haverá mesmo o quê esperar, além de tudo, o mesmo?