Teatro social do desmanche

Paulo Arantes, em seu livro O novo tempo do mundo (2014), especificamente em uma curta entrevista intitulada Em cena, aponta para uma série de questões bastante proveitosas a uma leitura atenta. Sem nenhum contorno, a espinha dorsal do problema chama-se desmanche. Hoje, estamos a alguns degraus abaixo daquele apontado por Albert Camus ao receber seu prêmio Nobel de Literatura em 1957: a uma geração que experimentou duas guerras, ascensão de regimes totalitários, câmaras de extermínio étnico, duas bombas atômicas, a única tarefa possível seria impedir  o desmanche. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial vivemos um tempo do mundo cuja tarefa já não é primordialmente construtiva.

Arantes tem a percepção do problema, consciência disto, e assim o aponta: “Se fosse possível e desejável resumir numa única fórmula o destino e o caráter do teatro de grupo hoje, diria que é o teatro desse desmanche da sociedade nacional. Ou por outra, mais exatamente, ele é o teatro do desmanche que já ocorreu e está sendo administrado por um outro e inédito pacto de dominação. A certa altura de Oresteia, que foi recontada pelo pessoal do Folias, um corifeu-clown anuncia que sua geração não se julga mais predestinada a refazer o mundo, mas que sua tarefa maior consiste justamente em ‘impedir que o mundo se desfaça’” (2014: 336). Se repararmos na passagem, seu autor não está aí tratando do meio intelectual, mas dos teatros de grupo em sua cidade, São Paulo.

Para estendermos um pouco mais a escrita de Arantes, é assim que ele nos apresenta o fosso existente entre os teatros de grupo e o mundo acadêmico: “O desencontro de hoje não poderia ser maior. No momento em que os trabalhadores do teatro se mobilizam na forma de uma inquieta consciência coletiva em confronto com a banalização do fazer artístico, a condição intelectual na universidade beira a inconsciência: faz tempo que deixamos de ser uma categoria social com expressão política própria, e a universidade, uma instituição” (2014: 334). O argumento se estende, mas o que importa está posto: o problema. E hoje, quem sabe não possamos incluir os profissionais da saúde como a infantaria de uma guerra a um nanoinimigo (Airton Uchoa), a infantaria no caso desarmada em uma guerra sanitária de mobilização-imobilização semitotal, uma infantaria tentando impedir o desmanche.

A questão é que o desmanche já havia ocorrido e estamos fazendo o que se faz numa época de expectativas em declínio, cujo passado recente está repleto de atrocidades que nunca saíram da cena e ao mesmo tempo ameaçam retornar: gerir emergencialmente os efeitos, tentar amenizar os sintomas. Porque o fundamento do problema é um recalcado ao qual quase ninguém ousa tocar, este chama-se mercadoria, chama-se trabalho (abstrato, assalariado, apenas trabalho, como queiram), este é um velho problema do capitalismo ao qual Marx havia apontado no século XIX e hoje estamos a consumar: o paradoxo, a contradição interna, a autodestruição capitalista de estabelecer o tempo de trabalho como medida da riqueza e, ao mesmo tempo, mediante a concorrência ter de reduzi-lo conforme desenvolve técnico-cientificamente as assim chamadas forças produtivas. É esse modelo que está em decomposição, desmanche, e todo caráter destrutivo em termos ambientais precisa ser remetido a ele, afinal, todos sabemos que um modelo de acumulação infinita é incompatível com um planeta e corpos finitos.

Walter Benjamin possui um texto intitulado Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht. Uma passagem, de saída, pode ser bastante elucidativa de suas pretensões: “’Essa falta de clareza sobre sua situação, que hoje predomina entre músicos, escritores e críticos, acarreta consequências graves, que não são suficientemente consideradas. Acreditando possuir um aparelho que na realidade os possui, eles defendem esse aparelho, sobre o qual não dispõem de qualquer controle e que não é mais, como supõem, um instrumento a serviço do produtor, e sim um instrumento contra o produtor’. Com essas palavras, Brecht liquida a ilusão de que o teatro se funda na literatura” (Obras escolhidas, vol. I: 79). Existe um longo percurso teórico-prático neste texto, que resumiremos apenas dizendo que Benjamin retira da experiência do teatro brechtiano os seguintes referenciais: gestualidade; interrupção; refuncionalização; correspondência às novas formas técnicas da época, o cinema e o rádio; o teatro não se limita a transmitir conhecimentos, mas os produz.

Em Fortaleza, até antes de a cidade dos homens parar, podíamos encontrar muitos grupos de teatro que faziam de Fortaleza um teatro do mundo análogo à representação que Arantes nos apresenta. Teatros de grupo e meio intelectual, acadêmico, e para estendermos com Brecht e Benjamin, o mundo da cultura de maneira mais alargada, diante do mundo capitalista e suas ruínas. Qual o papel, a tarefa, o lugar daqueles que encontram como ferramenta de atuação o imaginário, o gesto, o ato, a letra, diante do mundo legado pelas gerações precedentes, e até que ponto seus ouvidos conseguem escutar as vozes emudecidas, até que ponto pode o anjo da história ainda deter-se para acordar os mortos (ou quem sabe os vivos) e juntar os fragmentos? Em Fortaleza, há bem pouco tempo foi possível enxergar uma dialética em dois teatros de grupo: O declínio do egoísta Johann Fatzer, posto em cena pelo Teatro Máquina, configurou um teatro que pode ser chamado de bertoltbeckettiano, pois já não havia linguagem ali; a trinca Sertão.doc, Os cactos e Todo camburão tem um pouco de navio negreiro bem mereceria uma maior atenção, pois, além de narrar nossa trinca latifúndio-ditadura-redemocratização policialesca, o faz com um potencial crítico-prático além do absurdo.

Retomando o fio da meada, o fio da conversa fiada, em todo caso não seria inoportuno apresentar uma passagem do texto O autor como produtor, de Walter Benjamin: “Vemos aqui aonde conduz a concepção do ‘intelectual’ como um tipo definido por suas opiniões, convicções e disposições, e não por sua posição no processo produtivo” (Obras escolhidas, vol. I: 127). E assim ficamos com o problema inicial a ressoar e impelir, por que não apelar, um tratamento: qual nosso lugar, nossa tarefa, quais nossos meios, alianças, quais são nossas expectativas diante de um mundo de expectativas em declínio, que máscara estamos a vestir no teatro do desmanche social?

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

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