Quais os limites da arte? E qual a relação desse meio com o meio que compõe o corpo social contemporâneo? Essas são algumas das questões que movem o cinema contemporâneo e nos instiga rumo a um exercício de pensarmos a atual cinematografia para além das suas próprias extremidades. E no exercício estético-formalístico das possibilidades que o filme encerra, temos uma obra como The Square (2017).
O longa, dirigido pelo sueco Ruben Östlund, narra a estória de Christian (Claes Bang), um prestigiado curador-chefe do museu de Estocolmo, que tenta administrar sua caótica rotina das vidas pessoal e profissional. À medida que o tempo passa, entretanto, ele percebe que suas crises estão cada vez mais imbricadas entre si. E o controle sobre situações distintas se torna um imenso desafio numa improvável “jornada” de autodescoberta.
O uso de aspas para referenciar alguns dos pontos do longa talvez seja uma das melhores formas de iniciarmos qualquer olhar sobre The Square. Em seu sexto longa-metragem, Ruben Östlund nos apresenta uma narrativa que está iminentemente inserida no escopo da cinematografia contemporânea. Seja pelos seus aspectos técnicos e formalísticos, como a fotografia, o design de produção e trilha sonora original. Ou por conceitos ligados ao sentido do filme, como o conteúdo e seus significados.
Iniciando por esses últimos tópicos, é muito interessante notarmos como a obra se monta a partir de uma base mestra, na figura do problema pessoal envolvendo Christian, nosso protagonista. Mas que para além disso, vamos sendo inseridos numa teia conceitual que se desdobra quase que de modo independente aos eventos que ocorrem ao personagem. Esse “apartamento”, por assim dizer, é inserido na dinâmica do filme de um modo bastante orgânico.
A narrativa do longa é marcada por uma camuflada fragmentação. Uma vez que temos excertos ou pequenos capítulos que se somam ao contexto que a diegese fílmica, ou seja, da ação temporal na qual a estória se desenvolve. Mas a escolha desses elementos em nenhum momento é pautada por algum recurso que pudesse, por ventura, tirar a força da obra. Östlund abre mão, portanto, do uso desnecessário de cartelas ou transcrições temporais em detrimento a um trato mais direto com o espectador.
Ele deixa a ação transcorrer em sua naturalidade, entendendo que o olhar espectatorial não deve ser em momento algum subestimado. Nós temos as personagens bases do longa e algumas que a orbitam entre algumas sequências, mas a forma do filme em sim independe delas. E por eles não estarem tradicionalmente delimitados dentro da trama, suas funcionalidades se cumprem, muitas vezes, dentro de uma raio de uma único momento.
Um desses pontos é a sequência envolvendo a performance do “homem macaco”. Aqui, Terry Notary interpreta Oleg, um performer que executa um número durante um jantar ofertado para a alta sociedade sueca em um dos luxuosos espaços que compreendem o museu onde Christian trabalha. De longe, esse é o momento de maior suspensão do filme. E ele se encaixa exatamente no que dizíamos anteriormente porque o trecho em questão reúne as ideias de capitulação e construção e crítica acerca dos sentidos que o filme busca tensionar.
Neste segmento, Oleg caminha entre as mesas do lugar performando como um macaco intimidador e agressivo, por alguns momento. Há todo um jogo de construção progressiva em torno do incômodo, do medo e constrangimento. Oleg urra, mexe com os convidados, corre pelo espaço e sobe nas mesas sem se desprender do personagem que encarna naquela situação. Satírica, essa é uma sequência que representa a destilação de todos os temas do filme.
E o que poderia ser tomada como mais uma fatia fílmica, na verdade, é uma nova reflexão sobre o próprio cinema e suas naturezas estéticas e conceituais. Notary é conhecido por seus trabalhos como coreógrafo de movimentos em Hollywood interpretando personagens via tecnologia VFX, como o macaco Rocket da trilogia “Planetas dos Macacos” (2011-2017), entre outros.
Disso, é que o diretor Ruben Östlund toma referência para “brincar” com a situação do ator se colocar no lugar da interpretação crua daquilo o que ele mesmo faz de modo camuflado pelas novas tecnologias tão referenciadas pelos blockbusters ao redor do mundo. É como se o realizador nos dissesse: olhem, esse é o ator com um poder extraordinário de atuação que se esconde no meio da penumbra da natureza do cinema mainstream.
A crítica é sutil, refinada, mas está vibrando na tela. E o resultado é impressionante. Do mesmo modo como é prazeroso vermos a construção do cinema contemporâneo a partir das mais poderosas referências e escolas do cinema mundial. Como foi a Escola Surrealista, aqui tomada em primeiro plano pelas ideias do mestre espanhol Luis Bunuel. E por isso que na dinâmica das situações vivenciadas pelos personagens de The Square há sempre um traço do absurdo. Seja pelo diretor de museu que leva o bebê para as reuniões semanais ou da pedinte que exige especificações na comida ofertada por outro alguém.
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2017, The Square é um filme muito particular. Ele existe de forma original por ser concebido a partir de um roteiro que tem essa natureza. Por ter sido construído a partir do repertório que Östlund, enquanto diretor, foi acumulando ao longo dos anos. Todas as complexidades, vícios e estranhamentos, do recorte humano contemporâneo estão ali.
Em nenhum momento, entretanto, o longa se preocupa em dar todas as pistas ou solucionar conflitos. Na verdade, essa “solução” é suspensa e age no filme como uma assinatura da obra como um trabalho iminentemente contemporâneo. Porque assim como em Abbas Kiarostami ou Michael Haneke, Östlund compreende que esses são os signos que dotam a atual cinematografia de vitalidade.
*The Square está em cartaz em sessões diárias no Cinema do Dragão e demais cinemas de Fortaleza, e vale a pena conferir.
FICHA TÉCNICA
Título Original: The Square
Tempo de Duração: 142 minutos
Ano de Lançamento (Suécia, Alemanha, França): 2017
Gênero: Drama, Comédia
Direção: Ruben Östlund