SOBRE HAMBÚRGUERES E VÍRUS MENTAIS

Se nós fôssemos escolher entre dois animais – o rato e o gato – qual dos dois representaria melhor a China? Para o líder chinês Deng Xiaoping (1904 – 1997), “não importa a cor do gato, o importante é ele pegar o rato”. Em 1992, arrematou em bom som: “Uma nação só pode falar alto no sistema político-econômico mundial quando tem muito dinheiro”. Xiaoping foi um gato de visão e com projeto de nação, herdeiro de 5.800 anos de história chinesa.

Ele liderou a segunda revolução chinesa entre 1978 e 1992 ao introduzir diversas reformas econômicas denominadas “economia de mercado socialista”, com uma economia mista envolvendo empresas estatais e economia de mercado, em contraponto ao modelo planificado soviético. Dentro deste modelo, empresas de propriedade privada se tornaram um componente importante do sistema econômico ao lado empresas estatais federais e das coletivas municipais.

As reformas econômicas chinesas da era de Deng Xiaoping basearam-se em uma estratégia exportadora e na política de portas abertas. Elas foram implantadas para viabilizar a expansão global da capacidade de importar e proporcionar um rápido deslocamento da pauta de importações na direção de máquinas e equipamentos. Até então a pauta exportadora chinesa concentrava-se ao longo dos anos 1980 essencialmente em produtos intensivos em mão de obra e de baixo valor agregado.

O ciclo de expansão dos investimentos estatais da China ao longo dos anos 1990 foi acompanhado por uma ousada estratégia industrial onde o governo selecionou 120 grupos empresariais para formar um “time de empresas campeãs” (financiadas pelo BNDES de lá) em setores de importância estratégica. Parcela significativa dos investimentos públicos na China concentrou-se em empresas da construção civil (tipo Odebrecht e outras empreiteiras brasileiras). Naqueles anos as maiores taxas de crescimento foram registradas nas indústrias de cimento, aço, alumínio, automóveis, têxtil e carvão induzidos pela expansão da construção residencial que seguiu a urbanização.

Na década de 2000, esse milagre asiático deixou de ser fenômeno regional para se tornar realidade mundial, ultrapassando as fronteiras do espaço geográfico asiático. A China tornou-se o principal produtor e exportador mundial de manufaturas e importante mercado consumidor de máquinas e equipamentos da Europa e dos países asiáticos mais desenvolvidos, assim como de matérias-primas de países da América Latina, da África e da Ásia em desenvolvimento. Da mesma forma que a Inglaterra fez durante a Primeira Revolução Industrial, a China tem alterado a divisão internacional do trabalho e tem sido considerada a fábrica do mundo.

A grave crise global desde 2008 tornou mais claro o conjunto de sinais da decadência relativa dos Estados Unidos, evidenciando um novo deslocamento do centro dinâmico da América (Estados Unidos) para a Ásia (China) e o reaparecimento de multicentralidade geográfica desde a queda do Muro de Berlim. Esse quadro permitiu aos países de grande dimensão geográfica e populacional assumirem maior responsabilidade no desenvolvimento mundial, ao lado da China, tais como o Brasil, a Índia, a Rússia e a África do Sul. Nessa conjuntura, os Estados Unidos perderam protagonismo relativo em decorrência da ascensão da China, mas ainda possuem grande estoque de poder dadas as fontes de domínio da ordem capitalista que este país detém: a moeda e as armas.

A China tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil em 2009 e o maior investidor em 2010, refletindo a complementaridade das duas economias. O crescimento muito rápido do comércio, com a concentração da pauta de exportações do Brasil em matérias-primas e o rápido crescimento das importações totais brasileiras da China, aliado à elevação das importações de produtos de baixo custo, deram a essa relação uma imagem de desafios e oportunidades. Quando de sua visita à China, a presidente Dilma Rousseff (2011-2014) indicou a seus interlocutores a necessidade de dar um salto qualitativo na relação: os dois lados deveriam trabalhar conjuntamente para corrigir desajustes e assim garantir um crescimento acelerado da relação no futuro em bases mais equilibradas e em direção a outras áreas, buscando explorar as sinergias entre os planos de desenvolvimento do Brasil e da China, focalizando a cooperação em áreas de interesse comum.

No dia 18 de março passado, o deputado federal do PSL, Eduardo Bolsonaro (o Zero Três), com todo o seu racismo xenófobo, sem sequer apresentar análises científicas com provas documentais, escreveu de forma leviana mensagem no seu twitter responsabilizando o governo chinês pela pandemia do novo coronavírus. A embaixada da China no Brasil respondeu de imediato à ignorante agressão, afirmando que Zero Três contraiu “vírus mental, que está infectando a amizade entre nossos povos”. Diversos empresários chineses também se manifestaram: “Ficamos perplexos com tal atitude xenófoba. Qualquer atitude discriminatória como essa afeta as relações que mantemos. As declarações de Eduardo Bolsonaro queimam pontes entre empreendedores dos dois países e podem afastar investimentos”.

Como se sabe, em julho de 2019, Zero Três, ao defender sua indicação para embaixador do Brasil nos EUA, disse que em seu currículo de relações diplomáticas destaca-se o fato de ter fritado hambúrgueres naquele país. Como se vê, um conhecimento profundo de diplomacia internacional: frituras. A atual política de extrema-direita tem colocado o Brasil numa situação de nação-pária diante da comunidade internacional. E há setores que a apoiam.

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