Meu pai, que foi também professor de inglês e de contabilidade numa escola de comércio privada, costumava me falar do prestígio de que desfrutavam os professores da escola pública aí pela metade do século passado. Ele dizia: “Eram homens de bigode, vestiam terno, usavam chapéu e portavam guarda-chuva. Eram dignos da admiração da população pelo simples fato de serem professores da escola pública. Eram remunerados dignamente, de acordo com a nobreza de sua função”. Na sala de aula, professores; na sociedade, jornalistas, escritores, artistas, parcela expressiva dos intelectuais eram professores servidores.
Era possível acompanhar a transformação na vida de jovens aprovados em concursos do Banco do Brasil, por exemplo. O Banco era uma avançada instituição de financiamento do desenvolvimento nacional. Não havia empreendimento algum neste gigantesco país que não tivesse sido por ele financiado. Pequenos agricultores analfabetos ou semi-analfabetos, pés no chinelo, mãos cheias de calos, iam às agências e eram compreendidos e apoiados. Os jovens bancários compenetrados conheciam os incipientes empreendedores das comunidades, visitavam e fiscalizavam suas fazendas, sabiam quem eram e como trabalhavam, por isso não temiam financiá-los. O Banco do Brasil atuava nos sertões igual ou melhor que nas metrópoles. Nas cidadezinhas, pequenos industriais e comerciantes fizeram do apoio do BB alavancas de seu crescimento, e viraram grandes.
Gerentes do Banco do Brasil eram figuras importantes da sociedade até o fim da década de 1970. Eram convidados para qualquer evento político, social ou econômico relevante de qualquer cidade. Aquela instituição financeira estatal estava presente no financiamento de empresas de todas as áreas empresariais (agricultura, pecuária, serviços, indústria, comércio) e seus servidores concursados em todos os quatro cantos do país, capital ou interior, eram os olhos e os braços do progresso. Dizer que não havia concorrência entre bancos na época é falso, pois havia bancos estrangeiros poderosos disputando o mercado. O Banco do Brasil era dinâmico, ativo e corria riscos (coisa que os bancos não fazem mais).
O Banco do Nordeste do Brasil era uma escola de talentos, um celeiro de craques onde a iniciativa privada e a própria administração pública se abasteciam de mão-de-obra de alta qualidade. Celso Furtado criou e implantou uma Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene exemplar em termos de excelência de pessoal.
Os policiais não metiam medo na população. A função era evidentemente muito mais simples à época, mas o desempenho, o compromisso e a motivação pareciam maiores e melhores. Foi nesses tempos que instituições como o Corpo de Bombeiros (um pedaço da Polícia) souberam conquistar o respeito e a admiração do povo brasileiro.
Os Correios e Telégrafos tinham um desafio impossível: integrar um país de dimensões colossais, pobre em infraestrutura, logística absolutamente precária sob qualquer ponto de vista. E saíram-se muito bem. Eram ágeis, confiáveis, cumpriram sua missão àquele tempo.
As universidades ainda jovens cumpriam seu papel de formar as elites (aqui no melhor sentido da palavra). Aqui e ali brilhavam ora a escola de medicina, ora a escola de engenharia, às vezes uma escola de economia. A Fundação Getúlio Vargas (criada nos anos 1940) ainda era uma instituição de formação de quadros para o Estado e colaborava no desenvolvimento da gestão do serviço público. Afinal, ela nasceu para isso e isso era sua prioridade e seu foco.
Bombeiros, Polícia, Correios, Banco do Brasil, a Universidade, Sudene, Banco do Nordeste e a escola pública, qualquer um deles, a seu tempo e no limite das possibilidades de uma época, são exemplos de como o serviço público pode cumprir com excelência a sua missão e merecer mais do que o respeito da população, admiração e prestígio. A tendência natural seria uma evolução positiva da qualidade, por que não? Os bons exemplos se somavam como poderosos estímulos, referências positivas a serem seguidas.
Essa evolução positiva não era obra do acaso, uma eventualidade fortuita. Era consequência de um longo processo. Desde os anos imediatamente depois da segunda grande guerra e por 3 décadas o Brasil cresceu. O Getúlio Vargas ditador já havia deixado as regras de respeito ao trabalho e ao trabalhador. O Getúlio Vargas eleito pelo voto implantou as bases para o desenvolvimento industrial e institucional. O presidente Jucelino Kubitschek pôs os pés no acelerador e atreveu-se a lançar um Plano de Metas que se propunha a fazer 50 anos em 5, e em grande parte o fez. Atropelando a ditadura militar, o país crescia e seu crescimento era citado mundo afora como o “milagre brasileiro” (manipulações à parte).
A administração pública buscou se organizar nesses trinta anos (1945-1975), as bases do serviço público foram lançadas. O serviço público tinha uma mística. Não era universal, nem a isso se propunha, mas atendia bem. O servidor se orgulhava. Havia uma inércia (de movimento) que o empurrava à frente. A excelência nascia naturalmente no seio de cada (algumas) instituição. O progresso econômico puxava ou empurrava o desenvolvimento do serviço público. E o Brasil (e o mundo inteiro) cresceu forte nesses trinta anos específicos.
Com a chegada das crises tudo mudou. Na segunda metade dos anos 70 (em parte por causa do choque do petróleo), o Brasil afunda e entra de cabeça numa crise de dívida externa, alta da inflação, o crescimento econômico desaparece. Chega a década perdida. Surge e cresce o mercado de dinheiro de curtíssimo prazo (com base em títulos públicos) e improdutivo, nasce o “open market”, como se fosse a modernização, na verdade uma ciranda financeira. Os déficits não precisam mais ser cobertos, podem apenas ser financiados.
O mundo inteiro viveu, enfrentou e venceu o choque do petróleo, sem sacrificar seus serviços públicos. O Brasil precisou de mais trinta anos para vencer a crise, mas feriu de morte a qualidade do serviço público.
O Brasil impôs uma fatura alta contra o serviço e contra o servidor. O impacto no serviço público e na sua qualidade se dá a partir do início dos anos 1980. A década perdida termina com um presidente eleito após uma campanha que sugeria serem os servidores “os marajás” brasileiros. Os anos 90 se iniciam com campanhas publicitárias que varrem o país mostrando elefantes circulando nas repartições públicas, uma comparação criminosa. A inflação galopante engole os salários dos servidores, que desmotivados, com baixa autoestima e remuneração golpeada, nem conseguem reagir, nem lideranças há.
Não era casual a manipulação da opinião pública, não havia ingênuos nesse jogo. Havia interesses, havia planejamento inteligente. Ronald Reagan, presidente americano, e Margareth Thatcher, primeira-ministra inglesa, indicaram ao mundo o que queriam e como queriam na nova economia, no concreto mundo dos negócios. Era preciso enfraquecer o Estado, esmagar o serviço público, humilhar o servidor. Reagnomics, economia de oferta, globalização, neoliberalismo…
O que veio depois explicaria tudo: precarização planejada, terceirização acelerada, privatização apressada…
Uma resposta
Mais que politica, economia. Uma aula de historia! Parabens Osvaldo!