Serviço público de qualidade XVI – silêncio torturante, omissão criminosa

O primeiro teórico da administração foi Frederick Taylor, um engenheiro norte-americano. Sua proposição, apresentada em livro publicado em 1905, consistia na Organização Racional do Trabalho. Voltada para o chão de fábrica, ele promovia a divisão do trabalho. Taylor analisava todos os passos de uma determinada tarefa, dividia-a em etapas, buscava a melhor maneira de realizá-la, cronometrava sua execução e, a partir desse padrão ideal (desse estudo de Tempos e Movimentos, feito por outros pesquisadores), fixava a nova forma de realizar tal tarefa, em busca da plena otimização.

O francês Henry Fayol, quase ao mesmo tempo, mas noutro continente, estudava a estrutura de gerência e fez as propostas que complementavam o que propunha Taylor, também dividindo e especializando as funções de decisão e gestão.

A soma das duas propostas ficou conhecida como a Teoria Clássica e inspirou o formato das empresas até hoje. Taylor foi inspirador de Henry Ford e sua linha de montagem de automóveis na Ford. Fayol foi inspirador do executivo Alfred Sloan na General Motors, que foi exemplar em termos de estrutura de gestão. Esses dois teóricos e esses dois empreendedores do início do século passado fixaram as bases do que existe de essencial nas organizações até hoje.

Os críticos diziam que aquela era a “Teoria da Máquina”, porque ela ignorava os aspectos pessoais e humanos do trabalho. Tratava o trabalhador como um personagem sem vida, sem alma, que só trabalhava porque era inevitável e necessário ao seu sustento, ignorava seus sentimentos, suas emoções, suas expectativas naturais e legítimas. O genial Charles Chaplin, no seu filme “Tempos Modernos”, de 1936, traduziu essa brutalidade em imagens inesquecíveis, sem usar as palavras.

Essa ideia sempre me ocorre quando penso no serviço público. Uma legião de servidores se submete a concursos e, depois da aprovação, inicia uma carreira na máquina pública. E nela deve passar toda a sua vida produtiva.

O paralelo entre uma unidade de serviço público e uma unidade empresarial privada é inevitável. Há uma base comum, evidentemente, composta a partir da divisão do trabalho operacional e da organização da gerência. Na ponta, o contato direto com o cliente. Na hierarquia, o processo de tomada de decisão. Até aqui, tudo igual. Mas a igualdade praticamente termina aí.

As unidades empresariais são dinâmicas, ágeis, flexíveis. Empresários podem fazer tudo o que quiserem, exceto o que a lei proíbe. Escolhem com total liberdade o processo de recrutamento e seleção de seus quadros. Definem as funções conforme as necessidades efetivas. Fixam a remuneração do trabalho livremente, podem estabelecer metas e padrões de desempenho individual ou setorial. Promovem o alinhamento de valores dos seus empregados com os princípios da organização. Promovem com regularidade avaliações de desempenho, dão feedback. Criam programas de estímulos e premiam o mérito. Oferecem continuamente mecanismos de treinamento e desenvolvimento. Fixam planos de carreira, acenando a possibilidade de promoções rápidas, com base apenas na qualificação do profissional e nos resultados efetivos. Adaptam rapidamente suas estruturas, suas funções, seus processos e seus colaboradores às demandas e às mudanças que ocorrem na sociedade (no mercado), com destaque para os avanços tecnológicos, mas sem esquecer as inovações de gestão. Em toda a organização, todas as pessoas devem estar motivadas para identificar e atender necessidades e desejos do cliente, através da qualidade e da produtividade, da boa gestão.

Essa sucinta lista de ferramentas de gestão foi se desenvolvendo ao longo de um século de evolução da teoria administrativa. Logo depois da Teoria Clássica (da dupla Taylor-Fayol), aí pelo fim dos anos 1920 e início dos anos 1930, surgiu a Teoria das Relações Humanas, de Elton Mayo. Numa palavra, ele mostrava que o desempenho do trabalho (produtividade, qualidade) era fortemente influenciado por um “fator psicológico”. Os empresários inicialmente ficaram incomodados de ter que cuidar do tal fator, mas logo viram o outro lado, o lado bom da nova teoria: não era preciso dinheiro (investimento em máquinas ou estruturas físicas ou mesmo apenas remuneração) para melhorar o desempenho das organizações, bastava saber trabalhar o tal “fator psicológico”. Muitas outras inovações se seguiram ao longo dos últimos quase cem anos.

Aqui e agora caberia descrever as características da administração do serviço público, em comparação com as práticas da gestão na iniciativa privada. Este texto vai dispensar-se de fazê-lo. Por mais leves e cuidadosas que fossem as palavras usadas, dificilmente deixaria de parecer injusta e grosseira a comparação. O leitor é plenamente capaz de fazê-lo sozinho e sabe que só por exceção as melhores práticas são efetivadas na administração pública. Essas exceções são importantes, porque mostram que é possível, sim, a alta qualidade no serviço público, a partir do respeito ao servidor.

Pode-se, entretanto, afirmar com segurança que o “fator psicológico” que os teóricos identificaram há quase noventa anos é muito pouco levado em consideração na máquina pública. O servidor público, recrutado em duros embates nos concursos, onde mostra todo o seu potencial, regra geral, sem que nenhuma culpa lhe caiba, transforma-se numa peça ignorada e desvalorizada de uma engrenagem desumana. Este procedimento é ainda mais grave e negativo, porque se sabe que quando se fala em serviço, a qualidade depende fundamentalmente do trabalhador (mais do que de máquinas e outros fatores).

A gestão de pessoas no serviço público é um desastre, mesmo quase um século depois da descoberta do “fator psicológico”. Tão ou mais grave do que o problema em si é a omissão dos responsáveis. O silêncio que se faz em torno desta questão é torturante, ensurdecedor, um crime quase hediondo contra o servidor e contra a sociedade. Os criminosos são todos aqueles que têm a autoridade e a possibilidade de mudar essa realidade, e fingem que isso não é sua responsabilidade.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

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Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.