Serviço público de qualidade XIV – o elo mais fraco da cadeia

É difícil falar com alguma originalidade sobre assuntos velhos, que doem e cansam.

Masmorra, casa de torturas, inferno, escola do crime, pós-graduação da marginalidade, jaulas. Fere a dignidade do homem e da mulher, desrespeita os direitos humanos mais básicos, desobedece a Constituição, ignora a lei, foge dos princípios do Direito, não recupera ninguém, mistura pequenos com grandes bandidos. Desumano, cruel, medieval, atrasado, inseguro, mal gerido, caro, ineficaz, ineficiente.

Escolha qualquer substantivo,qualquer adjetivo ou qualquer das frases acima. Nenhum deles será considerado injusto ou exagerado quando se faz referência ao sistema prisional, um serviço básico e simples que o poder público presta ao cidadão brasileiro.

Alguma estranheza pelo uso da palavra “cidadão”? Você acha que o prisioneiro não é um cidadão? Ele é cidadão antes de ser condenado e volta imediatamente a sê-lo depois de cumprir sua pena. E, quando condenado e preso, está apenas com um de seus direitos suspenso, a liberdade. O prisioneiro é um cidadão, mas o cidadão que recebe os serviços prisionais não é apenas o prisioneiro. Somos todos nós, os membros da sociedade, livres. Este serviço é para o bem coletivo e para o equilíbrio social. Ele existe para nos fazer humanos, civilizados.

Superpopulação carcerária, baixa qualidade das instalações e dos equipamentos, sujeira, promiscuidade, violência sexual, física e psicológica, déficit de pessoal para os serviços, má remuneração do servidor, péssima alimentação e precário suporte médico, falta de estrutura de apoio, ócio, corrupção…

Vai longe a lista de mazelas dos institutos penais e vem de longe no tempo a atitude de tolerância dos governantes com todos esses problemas, todos passíveis de serem enfrentados e resolvidos. Não há um só desses problemas que se possa dizer acima das possibilidades concretas de ação do poder público. É muito cômoda a atitude de demonizar os condenados e condenar e constranger os que defendem os direitos humanos e a qualidade do serviço público sempre que se tenta debater seriamente a questão.

Falar das vítimas e de como elas são indefesas e esquecidas é uma das formas mais eficientes de fugir do debate essencial. E, enquanto isso, as vítimas se multiplicam e os crimes se tornam cada vez mais violentos, mais hediondos. E, para esse efeito triste e perverso, as escolas do crime seguem dando sua contribuição.

O país caminha para ter seiscentos mil presos. A Justiça tem um arsenal de opções. Mas, a sociedade brasileira está condicionada a pensar que só a cadeia é punição adequada. Seguindo o censo comum, os juízes condenam todos à cadeia. A restrição de liberdade é um castigo muito duro, severíssimo, caro para o cidadão que paga impostos e, para aqueles que têm alguma dignidade e uma legítima expectativa de recuperação, é mais difícil de suportar do que a ideia de morte. A cadeia não precisa dos acréscimos monstruosos da péssima qualidade do serviço público.

Jornais, revistas e tevê, quando noticiam um crime, sempre completam: “ninguém foi preso”, nunca se fala em investigação, processo, julgamento, recursos etc. Fica parecido com a atitude que a sociedade adotou contra os que tinham doenças psicológicas e mentais: melhor internar (passaram-se séculos para a recomendação mudar completamente, mas mudou).

O Estado não pode adotar nenhum tipo de escapismo nessa questão dramática do serviço prisional. Precisa enfrentar o problema. Precisa melhorar a qualidade dos serviços públicos para o cidadão. O serviço prisional de recuperação dos condenados tem que melhorar. Para o bem de todos os cidadãos, para o bem de toda a sociedade.

Pode-se especular para onde nos levam essa precarização profunda, a vista grossa da sociedade civil organizada e a hipocrisia dos governantes a médio e longo prazo: à terceirização ou à privatização.

A sabedoria popular diz que a força de uma corrente se mede por seu elo mais fraco. Se assim for, a cadeia de serviços públicos é uma tragédia.

Não devemos fingir que não vemos o problema e não sabemos da sua dimensão. Enfrentar e resolver o problema é imperativo: trata-se de tirar este serviço do nível da barbárie. Trata-se apenas e simplesmente de dar qualidade a este serviço. Assim, poderemos nos considerar civilizados, humanos.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

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Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.