Serviço público de qualidade III: proposta contra a corrupção

A proposta (de combate à corrupção no serviço público) que agora se apresenta está dividida em três providências de natureza meramente administrativa. Sua introdução e sua prática não implicam nenhum custo para o erário. Para serem aplicadas, são necessários apenas alguns minutos de trabalho de uma ou duas pessoas (do alto escalão) duas vezes por semana, quando muito. Dispensam legislação específica, pois podem ser implantadas por decisão de cada gestor no âmbito da instituição ou do poder que dirige, por decreto, resolução, portaria instrução normativa ou o que couber. Sua lógica pressupõe que restrições e constrangimentos à corrupção não podem nem devem pressupor a má-fé de todos. Em outras palavras: em todo organismo, há corrupção, mas os corruptos não são maioria, são apenas mais ousados. O corrupto alimenta-se do silêncio, da sombra e da impessoalidade – como um vampiro, ele sofre à luz do sol (na administração pública, o sol é a transparência).

Primeira providência: criar o Ato de (Possível) Repercussão Financeira (Relevante). Todo organismo público lida com interesses, e suas decisões e suas ações (e suas omissões) podem beneficiar indivíduos, empresas ou grupos. Como não se deve constranger nem burocratizar mais ainda as decisões e as ações da máquina administrativa, propõe-se que algumas delas sejam apenas reconhecidas e registradas. Este registro deve ser feito pela mais alta autoridade da instituição (secretaria, ministério, autarquia etc) e arquivado e deixado acessível pelo menos às instituições fiscalizadoras (poder legislativo, ministério público, tribunais de contas, corregedorias, ouvidorias etc). A palavra Relevante tem a função de exigir e estabelecer o bom senso na hora de definir os atos que precisam e merecem registro. E a palavra Possível tem a função de sugerir que nem todo ato corrupto é tão evidente.

Segunda providência: criar a Cadeia da Responsabilidade (dos Atos de Possível Repercussão Financeira Relevante, ou APRFR), tarefa também a ser executada pela mais alta autoridade em cada organismo público. A Cadeia da Responsabilidade seria um reconhecimento e registro formal que contaria a história e definiria a responsabilidade de cada servidor em relação ao Ato. Sim, do servidor; não do órgão. O registro deve listar os agentes do poder público responsáveis por cada etapa do APRFR. Ou seja, definem-se, reconhecem-se e registram-se os servidores responsáveis pela iniciativa, pelos estudos e avaliações iniciais, pelo planejamento, pelo processo decisório, pela negociação, pela licitação, contratação, pela fiscalização e pela avaliação, quando for o caso.

Terceira Providência: todo servidor que ocupe cargo de direção em nível de decisão final (no máximo meia dúzia de pessoas por órgão) deve registrar diariamente sua agenda e listar as pessoas (clientes internos ou externos) com quem teve contato, o que tratou e o que foi decidido, a quem foi o assunto encaminhado, sempre que este assunto possa vir a ser (ou já seja ou tenha sido) um APRFR. Para a mais alta autoridade do órgão, a agenda deve registrar até a vida social, quando esta configurar conflito de interesse.

A proposta ganha sentido com as três providências articuladas. A ideia orientadora é tirar a transparência do discurso e pô-la em prática. E focar a transparência (a luz do sol que fere o vampiro) no alto escalão e nos assuntos que envolvem interesses. Como dizem os americanos, quando querem entender um crime, um mistério e um ato corrupto: siga o dinheiro.

Em suma: todo ato ou decisão relevante deve gerar um registro de APRFR. Todo APRFR deve definir uma Cadeia de Responsabilidade. E os gestores de confiança em nível de direção devem registrar diariamente (e rigorosamente) suas agendas.

Esta é uma proposta simples e concreta de dar transparência ao exercício do poder que se faz em nome da população, apontada para os atos de repercussão financeira e voltada para os servidores da cúpula. Sim, essa proposta responsabiliza diretamente prefeitos, governadores e presidentes da república, quando couber, a depender da relevância. Por que não?

A impessoalidade no serviço público é um valor e uma conquista. Entretanto, impessoalidade sem transparência vira arrogância. E arrogância facilita a corrupção.

Este assunto vai voltar. O debate está aberto.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

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Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.