Aí se diz que o amor é o contrário da morte. Amor escapulindo como areia entre os dedos faz a morte iniciar seu vandalismo “erguendo os gládios e brandindo as hastas”, nas “cintilações de lâmpadas suspensas (…) ametistas e florões e pratas” do que se chama Eu, ego. Mas, “Na ogiva fúlgida e nas colunatas Vertem lustrais irradiações intensas”… E ao que se chama Amor muita das vezes mudo, distante e ruminado suas estripulias tenta redimir-se em: gestos. Cafona ou não, mal batizado ou não, tardiamente ou não, é muito bonito saber que essa moça também faz versos, quem disse que não? E quem disse que precisa de licença? Com afeto, o que posso a você no momento nesse Potlatch que tanto amo em vida. Seus versos, ei-los, Raíssa Cardoso.
[Tecitura]
E sigo me tecendo
Tal como uma colchinha de retalhos
Intento absorver tudo do mais belo
Dentro de mim
Andava colorida
Entusiasmada
Os pés quase que não pisavam o chão
Era grande o afeto
Coração aberto
Devorador de novidades
A fome foi tanta que o peito fez buraco
Quando se viu insaciado e triste
Surpreendida com o buraco que havia se formado
Vesti preto
Cor de vazio
Também cor de sombra, mistério e noite
Enigmático e indizível
A razão endureceu os afetos
Já tão apertados
Da colcha de tecido gasto
Fiz fragmentos
E quis devolver de pessoa a pessoa
Aqueles pedaços que já não sabia
Mais precisar se me pertenciam
Os retalhos iam se desfiando
E deixando as relações distantes
Como um fio esgarçado
E eu adentrava no buraco
Com meu punhado de fios soltos
Vazio de floresta escura
Mata alta, úmida
Pântano
Quem me alcança aqui?
Alguém?
Ninguém?
Do lado de fora da floresta
Há cores, sol, música e poesia
Há um banquete pra minha fome
Que confesso me assustar
Mas é condição de estar viva
Vívida
Ouvi que o contrário da morte é o amor
E a alma pede licença
Pra razão que enrijece
Quer dar um passeio
Brincante, leve
Não permita Deus que eu morra triste
Invoco os imprevistos
Tal como colônia de Clarice
Arrisco sair da caverna
E rir de minha tolice
Disfarçada de certeza
Que eu nem nunca tive
Mire e veja
Viver é muito perigoso
Mas quanta beleza e surpresa
Há na travessia…
[O ovo de Clarice na sala de Buñuel]
E sem que galinha chocasse
o ovo tremeu-se
e quebrou-se
nasceu um pintinho
deixando a mesa vazia para aqueles
que comeriam o pretenso banquete.
Me justifiquei
mesmo que não tenha sido
solicitada uma explicação.
Ainda não entendia o nascimento
e nem a presença daquele monte de
gente
a quem eu não precisava
e não mais
conseguiria servir.
Ainda mantive, entretanto,
um falso avental –
o inconsciente embaralhado
com a ruptura de um plano inicial
traçado quando ainda não havia
recursos
para além de um punhado de verdura,
alguns poucos alimentos empilhados
na despensa
e o constrangimento de convidados
famintos
poetas sisudos
que nem sequer fome haviam
declarado.
[Roteiro de íntima valsa]
Às vezes fico muda
Acontece de repente
Engulo as palavras
E travo qualquer possibilidade de prosa.
Tudo parece expor demais
Revelar fraquezas, sombras
Pequenices.
É que sou incompleta.
Um rascunho sem muita ordem
– Quando passar a limpo, melhora?
Queria me apresentar já pronta
A essa tal peça sem ensaio
Sem roteiro.
Que chato também os roteiros!
Queria manjar de improviso
Constantes improvisos
– Não dá pra errar,
e nem pausar?
Muda.
Então me deixem muda.
Não reparem não.
Abaixo os olhos e os ombros
como se isso me ajudasse a sumir
ou passar batida na cena.
Onde são os bastidores?
Quero conversar nos bastidores
com todos desnudos.
Mas vejo o figurino e o cenário
O retoque das maquiagens
E me agita também a empolgação da
estreia
de um personagem qualquer
Vistoso, Bem-apessoado
digno de palco.
Podia ser um musical
ou uma peça mais moderna sem
exigência de linearidade:
cenas sem muito nexo,
atos falhos,
todos falhos e rindo.
E quando emudecer?
Silêncio também é fala?
Ao menos se as palavras engolidas
não causassem indigestão…
Queria que virassem dança choro grito
ou um simples movimento de
concha.
Bonito ainda assim.
Imagina a concha no meio da cena!
Concha protege a pérola
Casulo protege a lagarta em transformação…
Pronto, temos um roteiro.
[Ser-tão]
Tão não se aguenta no peito
Percorre os braços, diafragma, pelve,
pernas e pés inquietos
Retorna em espiral
da coluna sacra
até a pontinha da nuca
Como a sussurrar um segredo em
forma de vento
no canto detrás do ouvido
A mente e seu maquinário não
codificam bem a mensagem
mas dos olhos vertem rios
tal como águas nascentes em reino de
Buritis.
Os olhos, veredas,
ganham também um brilho de luz
refletida e própria
numa refração de ângulos infinitos
que atingem em cheio
o coração.
Ele, pulsa firme e mandingado
com todo agito metafísico do corpo!
O pulmão quer logo absorver o mundo
em suas belezas
e libera o ar umedecido com
partículas de encantamento.
De repente, me sinto toda
remexida,
revirada,
em ponto latente de
transformação
véspera de ebulição, condensação
– ou qualquer mudança intensa
de estado que não sei bem
definir.
Transbordamento inadiável!
Encontro entre muitos rios
atraídos a um mesmo ponto de
convergência e potência.
São tão claros e misteriosos
os encontros…
O que tem de ser tem muita força!