Senhorita Gorbachev – PEDRO HENRIQUE

 

Aí se diz que o amor é o contrário da morte. Amor escapulindo como areia entre os dedos faz a morte iniciar seu vandalismo “erguendo os gládios e brandindo as hastas”, nas “cintilações de lâmpadas suspensas (…) ametistas e florões e pratas” do que se chama Eu, ego. Mas, “Na ogiva fúlgida e nas colunatas Vertem lustrais irradiações intensas”… E ao que se chama Amor muita das vezes mudo, distante e ruminado suas estripulias tenta redimir-se em: gestos. Cafona ou não, mal batizado ou não, tardiamente ou não, é muito bonito saber que essa moça também faz versos, quem disse que não? E quem disse que precisa de licença? Com afeto, o que posso a você no momento nesse Potlatch que tanto amo em vida. Seus versos, ei-los, Raíssa Cardoso.

 

[Tecitura]

E sigo me tecendo

Tal como uma colchinha de retalhos

Intento absorver tudo do mais belo

Dentro de mim

Andava colorida
Entusiasmada
Os pés quase que não pisavam o chão

Era grande o afeto

Coração aberto

Devorador de novidades

A fome foi tanta que o peito fez buraco

Quando se viu insaciado e triste

Surpreendida com o buraco que havia se formado

Vesti preto

Cor de vazio

Também cor de sombra, mistério e noite

Enigmático e indizível

A razão endureceu os afetos

Já tão apertados

Da colcha de tecido gasto

Fiz fragmentos

E quis devolver de pessoa a pessoa

Aqueles pedaços que já não sabia

Mais precisar se me pertenciam

Os retalhos iam se desfiando

E deixando as relações distantes

Como um fio esgarçado

E eu adentrava no buraco

Com meu punhado de fios soltos

Vazio de floresta escura

Mata alta, úmida

Pântano

Quem me alcança aqui?
Alguém?
Ninguém?

Do lado de fora da floresta

Há cores, sol, música e poesia

Há um banquete pra minha fome

Que confesso me assustar

Mas é condição de estar viva

Vívida

Ouvi que o contrário da morte é o amor

E a alma pede licença

Pra razão que enrijece

Quer dar um passeio

Brincante, leve

Não permita Deus que eu morra triste

Invoco os imprevistos

Tal como colônia de Clarice

Arrisco sair da caverna

E rir de minha tolice

Disfarçada de certeza

Que eu nem nunca tive

Mire e veja

Viver é muito perigoso

Mas quanta beleza e surpresa

Há na travessia…

 

[O ovo de Clarice na sala de Buñuel]

 

E sem que galinha chocasse

o ovo tremeu-se

e quebrou-se

nasceu um pintinho

deixando a mesa vazia para aqueles

que comeriam o pretenso banquete.

Me justifiquei

mesmo que não tenha sido

solicitada uma explicação.

Ainda não entendia o nascimento

e nem a presença daquele monte de

gente

a quem eu não precisava

e não mais

conseguiria servir.

Ainda mantive, entretanto,

um falso avental –

o inconsciente embaralhado

com a ruptura de um plano inicial

traçado quando ainda não havia

recursos

para além de um punhado de verdura,

alguns poucos alimentos empilhados

na despensa

e o constrangimento de convidados

famintos

poetas sisudos

que nem sequer fome haviam

declarado.

 

[Roteiro de íntima valsa]

 

Às vezes fico muda

Acontece de repente

Engulo as palavras

E travo qualquer possibilidade de prosa.

Tudo parece expor demais

Revelar fraquezas, sombras

Pequenices.

É que sou incompleta.

Um rascunho sem muita ordem

– Quando passar a limpo, melhora?

Queria me apresentar já pronta

A essa tal peça sem ensaio

Sem roteiro.

Que chato também os roteiros!

Queria manjar de improviso

Constantes improvisos

– Não dá pra errar,

e nem pausar?

Muda.

Então me deixem muda.

Não reparem não.

Abaixo os olhos e os ombros

como se isso me ajudasse a sumir

ou passar batida na cena.

Onde são os bastidores?
Quero conversar nos bastidores

com todos desnudos.

Mas vejo o figurino e o cenário

O retoque das maquiagens

E me agita também a empolgação da

estreia

de um personagem qualquer

Vistoso, Bem-apessoado

digno de palco.

Podia ser um musical

ou uma peça mais moderna sem

exigência de linearidade:

cenas sem muito nexo,

atos falhos,

todos falhos e rindo.

E quando emudecer?

Silêncio também é fala?

Ao menos se as palavras engolidas

não causassem indigestão…

Queria que virassem dança choro grito

ou um simples movimento de

concha.

Bonito ainda assim.

Imagina a concha no meio da cena!

Concha protege a pérola

Casulo protege a lagarta em transformação…

Pronto, temos um roteiro.

 

[Ser-tão]

 

Tão não se aguenta no peito

Percorre os braços, diafragma, pelve,

pernas e pés inquietos

Retorna em espiral

da coluna sacra

até a pontinha da nuca

Como a sussurrar um segredo em

forma de vento

no canto detrás do ouvido

A mente e seu maquinário não

codificam bem a mensagem

mas dos olhos vertem rios

tal como águas nascentes em reino de

Buritis.

Os olhos, veredas,

ganham também um brilho de luz

refletida e própria

numa refração de ângulos infinitos

que atingem em cheio

o coração.

Ele, pulsa firme e mandingado

com todo agito metafísico do corpo!

O pulmão quer logo absorver o mundo

em suas belezas

e libera o ar umedecido com

partículas de encantamento.

De repente, me sinto toda

remexida,

revirada,

em ponto latente de

transformação

véspera de ebulição, condensação

– ou qualquer mudança intensa

de estado que não sei bem

definir.

Transbordamento inadiável!

Encontro entre muitos rios

atraídos a um mesmo ponto de

convergência e potência.

São tão claros e misteriosos

os encontros…

O que tem de ser tem muita força!

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

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