E se Nietzsche chorou, eu também posso, por Luciano Moreira

Quando o Boeing 737-400 da Varig tocou os pneus do trem de pouso na pista do aeroporto de Brasília, numa aterrissagem das mais tranquilas por mim experimentadas em todas as poucas viagens aéreas que fiz, sempre a serviço e, portanto, custeadas pelo erário federal, o sol planaltino já se despedira, havia pouco, do “monumento a céu aberto” que alberga o poder republicano da pátria “adormecida em berço esplêndido”. A luminosidade artificial ia, aos poucos, preenchendo os desvãos da escuridão noturna que envolvia friamente a cidade projetada arquitetonicamente por Oscar Niemeyer para, como se um avião fosse, ser a capital do país. Intenso se fazia o movimento das pessoas, afinal era uma noite de sexta-feira. Desfile nervoso de gravatas em profusão. E de arrogâncias e petulâncias em demasia. Só gente deveras importante!

Vindo de São Paulo, onde participara de mais um encontro nacional de servidores responsáveis pelas propostas de instauração de processos administrativos contra instituições financeiras e administradores – conselheiros e diretores –, bem como pela análise de defesas formalmente apresentadas pelas pessoas (jurídicas e físicas) neles indiciadas, a minha expectativa era de que ocorresse, dentro da previsão e da normalidade, a conexão com voo com destino a Fortaleza e escalas em Salvador e Recife. E, assim, o início da madrugada se faria o pórtico de retorno ao meu mundinho bem particular.

Não foi bem o que aconteceu. De imediato, veio a informação de que tal voo tinha um atraso estimado em duas horas. Ou seja, seriam três horas e alguns bons minutinhos de espera.

Mesmo fora da zona de conforto – não me incluo entre os experts em situações do gênero –, ponderei que, se o problema foge ao meu controle, eu é que devo controlar-me. Agi, então, com tranquilidade. Cuidei do corpo, no restaurante panorâmico do aeroporto. Cuidei do espírito, na livraria: após rápidas leituras de orelhas de livros bem expostos (E cheiros! Como é bom cheirar livros novos! Eles emanam um odor bem mais agradável que o do dinheiro novo… não sei o porquê dessa comparação, acreditem-me!), optei por O caçador de pipas, do afegão Khaled Hosseini, com tradução de Maria Helena Rouanet. Procurei um bom lugar para esconder-me e, ali bem acomodado, iniciei a caminhada pelo chão marcado pela amizade e a traição e pisado pelos amigos Amir e Hassan: “Dezembro de 2001. Eu me tornei o que sou hoje aos doze anos, em um dia nublado e gélido do inverno de 1975.” A sala de visitas da obra já revela a onipresença do autor.

E eu estava ali, quieto, compenetrado, numa outra viagem, bem mais prazerosa, de menores riscos e de maiores ganhos. E era apenas o início da noite de um dia qualquer, de um mês qualquer, do ano de 2006 da Era Cristã.

Eis que uma voz inesperada denunciou a invasão do meu peculiar esconderijo:

– Xykolu!

Poucas pessoas me tratam assim, o que reduzia drasticamente o universo de possibilidades. Abandonei o curso da história, escanchei o livro aberto sobre o peito e levantei o olhar incrédulo, enquanto a voz prosseguia alegremente:

– Há quanto tempo, amigo meu! Que prazer reencontrá-lo!

Era ele mesmo. Ou melhor, eram eles. Dois colegas do curso de Economia da UFC que se formaram em Direito ele e em Administração ela. Eu acabei indo pra Contábeis e me graduando, muito tempo depois, em Letras. Eles se enamoraram ainda no prédio róseo da avenida da Universidade e, logo depois soube, casaram-se assim que o projeto a dois atingira sua parte ótima de execução.

Abraçamo-nos. Trocamos dois dedos de prosa. Atualizamos nossos dados pessoais de maior referência. Eles estavam também em conexão em atraso, só que no sentido inverso: vindos de Belo Horizonte, tinham Porto Alegre como destino, após outra conexão em São Paulo e escala em Curitiba.

A conversa tomou melhor rumo em mesa estrategicamente posicionada – para conversas, é claro! – no restaurante refrigerado do aeroporto.

O encontro tornou-se rico pelo intercâmbio de experiências; num primeiro momento, de cunho social, para depois, sem que isso fosse a nossa pretensão, de natureza eminentemente profissional. Três técnicos compartilhando vivências. Eu, com minha jangada fundeada no azul e aparentemente tranquilo mar dos esquemas fraudulentos do universo privado (berço do famigerado Caixa Dois, em meio a outras consagradas estripulias dos homens dos negócios financeiros, que só adquiriam forma nas profundezas dessas águas tão escuras); eles, saindo, por convicção, do mundo das consultorias e assessorias a entes jurídicos e físicos também versados e versáteis no cometimento de atos ilegítimos e de interesse próprio no pródigo universo público.

– Não há um caso sequer que não contemple um desvio, por menor que seja. – Confidenciou ele.

– Há casos até de múltiplos desvios. – Complementou ela.

E, de um caso recente, serviram-se eles para exemplificar. O de um deputado federal que, ao saber que o prefeito iria embolsar um certo percentual do projeto, não se contentou com o tratamento igualitário. E, com razão. Afinal, além da questão hierárquica, havia a da titularidade: a verba fazia parte do seu quinhão pessoal. E o projeto teve de ser refeito, no particular, para atender às exigências de quem detinha a chave do cofre.

– Há uma dúvida ainda pairando no ar: não se sabe se a obra foi concluída. – Arrematou o advogado amigo.

Para espairecer, após ressaltar que eu, como amante do futebol, certamente já ouvira transmissão de jogo do meu Vozão, em radinho de pilha, na voz inconfundível do mais criativo narrador esportivo do rádio cearense, o Gomes Farias, indagou-me:

– Você se lembra do bordão “Incalca, Katinha!”*? Pois bem. Eu tenho a esperança de que vai chegar um momento na história deste país em que esse mar de lama será revirado e muito fedor vai empestear o ar que nós, os comuns, os cidadãos, os contribuintes infelizmente respiramos. E aí será a hora dos gritos de estímulo: “Incalca, Ministério Público!” “Incalca, Polícia Federal!” E poucos, pouquíssimos, se salvarão.

Dito isso, eu propus:

– Então, brindemos a esse tempo de limpeza total, tanto na vida pública quanto na privada!

Informados de que o voo deles iria acontecer em breve, despedimo-nos. Eu ofereci ao casal, como marca do reencontro, o exemplar recém-comprado de O caçador de pipas. Ela retirou da sacola o exemplar de um livro e me entregou dizendo:

– Amigo, você vai gostar. Afinal, tem a sua cara.

Era Quando Nietzsche chorou. Confesso que o meu espírito sensível não se conteve… E, se Nietzsche chorou, eu também chorei… só que um choro cujas lágrimas não se derramam pela face já marcada por outras dores, por outros dissabores, mas inundam o mais recôndito do ser, lá onde a esperança faz morada e as frustrações e decepções insistem em causar-lhe incômodos, desapontamentos.

Por volta das sete da manhã do sábado, tomei o café da manhã com minha eterna parceira.

(*) Incalca – flexão da variável popular do verbo “encalcar”, no sentido de “ir no encalço de” ou, por “calcar” (figurativo), “oprimir, humilhar, vexar”; Katinha – um autêntico ponta-direita, de baixa estatura e alta velocidade, que, com dribles desconcertantes e cruzamentos primorosos, encheu de brilho os olhos dos torcedores alvinegros, na década de oitenta, ou seja, no tempo em que o futebol brasileiro ainda primava pela beleza, pelo encanto, aproximando-se da arte.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.