Sangue Ruim: o cinema como estado de poesia

Quando o cinema moderno francês começava a tomar nova forma, a partir da segunda metade do século XX, as bases de uma subsequente cinematografia também se desenhavam a partir das ideias que a nova onda francesa, então, esquadrinhava. E na esteira das ideias e conceitos propostos por Jean Luc Godard, François Truffautt e Agnès Varda, uma revigorante geração de jovens realizadores mostraram potentes trabalhos ao mundo. Um desses personagens é Leos Carax.

Expoente de uma geração que reeditou os fundamentos do cinema contemporâneo, não só na Europa, mas no mundo todo, Carax é um realizador de obras profundas. E uma delas é “Sangue Ruim” (1986). Na estória, Alex (Denis Lavant) é um jovem jogador de cartas e aspirante a mágico que aceita realizar um roubo de uma fórmula do que seria uma nova droga a ser comercializada como antídoto de um vírus chamado STBO. Este trabalho lhe permitiria finalmente sair de sua cidade atual e viajar para outro País.

Complexo, o filme é notadamente composto de muitas camadas. Estas, por sua vez, compõem-se de inúmeros outros sutis detalhes que, em forma e conteúdo, ditam o longa como uma das mais marcantes obras dos anos 1980. Começando pelo sentido, Sangue Ruim é um verdadeiro exercício de escrita poética. E essa poesia emerge tanto nas falas dos personagens, quanto nas licenças que o próprio Carax assume em cada take realizado.

É como se o trabalho transcendesse a posição da mera exposição da dramaturgia, em função de uma proposta mais honesta de um cinema que assume sua vocação como arte. Sem exageros ou falsas tomadas de posições, o filme aposta na sutileza para sua efetiva transmissão de mensagem. Tal estar pode ser atestado também no uso da elipse como técnica e linguagem.

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Sem exageros ou falsas tomadas de posições, o filme aposta na sutileza para sua efetiva transmissão de mensagem. Aqui, Lavant encena com Julie Delpy, à época com 17 anos.

Basta pensarmos toda sua construção, feita por sequências condensadíssimas. Com planos curtos, mas que carregam consigo uma potente carga enunciativa. Como quando vemos o suicídio do pai de Alex num take que não dura sequer dois minutos. É a tese da construção elíptica que Carax toma da Nouvelle Vague e aplica em sua proposta de cinema.

Falar de uma novíssima proposição cinematográfica, mesmo contextualmente, pode ser exagero, uma vez que o realizador se utiliza de alguns conceitos da cinematografia até então pensada para estruturar o seu cinema. A fragmentação dessa narrativa é muito semelhante à que vemos em “Uma mulher é uma mulher” (1961) ou “Pierrot le Fou” (1965), ambos realizados por Godard. São saltos temporais que em nenhum momento prejudicam nosso entendimento da obra.

Na verdade, percebemos que o intento de Carax tenha sido mesmo o de criar esse rastro referencial, ao mesmo tempo em que se esforçou para construir uma narrativa enxuta e que se desapega do seu próprio tempo diegético*, assim como algumas outras referências que a formam. Em nenhum momento há indicação de onde se passa a estória, em qual país ou bairro ela se estrutura. O lugar de Sangue Ruim é aquele em que nós, enquanto espectadores, desejarmos que ele seja.

Tudo soa minimalista. Os poucos personagens (seis, no máximo), os cenários simples, quase de uma dinâmica teatral, nos convidam para uma estória que é iminentemente poesia e amor. Mas diferentemente do que costuma-se associar, não enxergamos “coraçõezinhos” nas falas dessas personagens. O que há é transgressão. De um estar que coloca a realização como um verdadeiro exercício criativo.

Nas duas imagens abaixo, extraídas do filme, temos uma sequência de planos alternados entre primeiríssimos planos do olhar de Anna (Juliete Binoche) e das caretas de Alex (Lavant). É uma das cenas mais lindas do longa. De uma simplicidade e sensibilidade extremas. Como se por alguns instantes, fôssemos convidados a olhar para o cinema com os olhos de uma criança mesmo, que se desvela e encanta com as coisas simples que nos vêm em nosso dia a dia.

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Tudo soa minimalista. Os primeiríssimos panos nos convida a uma estória que é iminentemente poesia e amor.

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Porque Sangue Ruim não assina contrato com a clássica narrativa que conta histórias. O filme acima de tudo, usa o fazer cinematográfico em favor de uma contraposição a todo olhar hegemônico que perdurava em 1980, e que hoje ainda perdura.

E não por acaso, a “vilã” do filme é uma americana. E os franceses são os teimosos românticos que seguem na “tora”, apresentando suas propostas desse cinema que pode não ser feito de finais felizes, mas garantem uma sublime apreciação de uma arte que poderia emergir do íntimo de cada um de nós. De mim e de você.

* Dentro do cinema, a diegese diz respeito a algo que ocorre dentro da narrativa ficcional do próprio filme.  É como pensarmos uma música de trilha sonora incidental que acompanha uma cena  do filme, mas que é externa à diegese, pois não está inserida no contexto da ação. Agora, se a mesma música é ouvida por um personagem dentro da estória, ela se torna diegética, uma vez que se encontra dentro do contexto ficcional.

FICHA TÉCNICA

Título Original: Mauvais Sang

Tempo de Duração: 116 minutos

Ano de Lançamento (França): 1986

Gênero: Drama, Suspense

Direção: Leos Carax

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

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Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.