Sangue Negro: E o conflito do homem consigo mesmo

O cinema clássico, sobretudo o hollywoodiano, trouxe consigo uma série de convenções que ao longo de várias décadas ditaram seu modo de ser. Falamos do final da primeira e segunda metades do século XIX e XX. A forma de se contar uma estória em termos cinematográficos tinham de ser clara, unívoca e resolutiva. E na esteira do cinema dos anos 2000 todo um universo de possibilidades abriu-se às estórias que iam além dessa marca. Dentre esses filmes está Sangue Negro (2007).

Fazer esse paralelismo nos parece a melhor forma de pensarmos o lugar desse brilhante trabalho de Paul Thomas Anderson. Porque em seu quinto longa, ele estabelece um parâmetro bem particular em uma narrativa que teria tudo para ser ou estar na “linguagem cinematográfica padrão”. Mas estamos falando de escolhas. E aquelas tomadas pelo realizador nesse filme definiram o que esse trabalho é.

Que tal começarmos pela estrutura? Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis) é um minerador que entre os anos 1898 e 1928 tenta construir carreira como extrator de petróleo. Na fronteira da Califórnia (UEA) ele monta uma sólida cadeia de produção ao longo desse tempo. Entre a ambição que o domina às pressões de um jovem ganancioso pastor e das companhias extratoras da América, Plainniew tentará se manter “de pé”, independente do preço que tenha de pagar por suas ações.

Narratológicamente falando, o filme se apresenta impecável. E de fato o é. Cena a cena, sequencialmente, somos apresentados aos personagens da trama. O ambiente vai sendo revelado sem pressa. Não temos saltos abruptos no tempo, ou flashbacks que nos contextualize sobre algo do passado. A ação fílmica de Sangue Negro se desenvolve como tantas outras já vistas por aí. Mas não estamos falando de Spielberg ou da lógica que rege seus trabalhos.

Porque Lincoln não é Sangue Negro. Mas não mesmo! Já que Paul Thomas vai além do que a narrativa pode oferecer. Spielberg se contenta com a estória oficial. São discrepâncias que dizem muito acerca das variantes contidas na forma fílmica e do próprio modo como a autoria no cinema se faz importante para a afirmação de uma cinematografia livre e que produza sentido para além do que ela própria é.

Essa mensagem que ressoa na leitura do filme e nos suscita essa positiva fagulha de inquietação deve ser louvada. Ali, o trabalho nos confronta. E o desafio de se entender o que ele será completa a experiência cinematográfica. Fazemos parte dessa produção de sentido. E isso é o que o realizador nos sugere ao idealizar seu trabalho tal qual pensara.

A personagem de Plainview, assim como o homem atolado em suas contradições é um esboço do espírito de um tempo. Ele é a confusão da qual a modernidade se molda. Sua sede pelo progresso mascara, na verdade, um descontrole de quem está num infindável conflito consigo mesmo. E se por um momento seu falso altruísmo nos parece uma escada para sua redenção, logo tudo se revela uma amálgama da loucura de um ser menor que seus escrúpulos.

Portanto, aquela figura parece não estar ali para gostarmos dela. A empatia por ela é algo inalcançável. E esse é o brilho de Sangue Negro. Já que estamos diante da fábula que nos livra da moral. A produção reflexiva que emergirá ao fim da projeção só caberá a você. O filme não lhe dará respostas. Ele te colocará questões que o conduzirão a diversos debates. Uma vez que esse é o lugar do cinema contemporâneo.

Pouco importa se Paul Thomas seguiu ou não à risca o romance “Oil!” de Upton Sinclair, ao fazer o filme. Porque cinema é uma linguagem, literatura é outra. E a estrutura na qual o longa se ancora ganha força nela mesma, enrijecendo-se na originalidade que somente a ela cabe. Esse traço é o que o liberta enquanto projeto fílmico. Ele é um western, e também um drama, é um épico, com doses homeopáticas de surrealismo, é existencialista sendo ao mesmo tempo naturalista.

Sangue Negro se coloca como obra “não imposta”. E toda sua potência brota dessa marca, digamos, experimental por ela adotada. E o traço desse cinema que aponta diretrizes se dá não pelo o que ele transgride, mas sim realoca. Onde alquimicamente nos damos conta dessa nova configuração na qual o cinema se insere. Atuando numa liberdade artística e criativa, usando o clássico como suporte à potência do contemporâneo.

FICHA TÉCNICA

Título Original: There Will be Blood

Gênero: Drama

Tempo de duração: 158 minutos

Ano de lançamento (EUA): 2007

Direção: Paul Thomas Anderson

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

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Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.