Não é pelos cabelos brancos, pela calvície que avança, pelos passos lentos, oscilantes, pelos ombros já curvados, nem pela idade já na oitava década, pelas rugas cada vez mais evidentes ou pelo número de netos.
Não é porque se queira deixar alguém acima da lei, numa posição inalcançável à “justiça dos homens” – a lei é dura e deve ser cumprida. Não, não se pode aceitar que alguns são mais iguais que outros, e a eles está garantida uma omissão silenciosa ou uma justiça bem mais lenta, que segue discreta rumo a gavetas do esquecimento e da prescrição, seja quem for. A lei tem de ser igual para todos, ou não é lei.
Pense nele como um homem que deu uma contribuição política e administrativa a seu pais, durante uma penca de anos, tornando-se, nesses momentos, mais vidraça do que estilingue. Que, se por um lado teve o benefício de exercer o poder, também abriu mão de poder escolher sua agenda, seus interlocutores, suas viagens, tendo que se submeter a protocolos e etiquetas sem fim e a momentos de alto estresse e desgaste emocional.
Pense nele como alguém que teve que pesar e medir as palavras que poderia dizer, os amigos com quem arriscaria confraternizar, os telefonemas e e-mails que poderia responder, as demandas razoáveis e legítimas a que teria de dizer não, pense nele como alguém que perdeu o direito a alguma privacidade e a momentos de descontração e lazer normais nos comuns dos mortais.
Imagine um homem que carrega o peso de decidir sobre o destino dos outros, sejam velhos, mulheres ou crianças, com a responsabilidade de deliberar sobre, por exemplo, saúde e educação de milhões de humildes e sobre as fortunas, os lucros e os tributos de alguns ricos e poderosos, com prazos curtos, com pressões fortes, enfrentando forças ocultas e ameaças terríveis dentro e fora do Palácio, dentro e fora do país.
Imagine alguém que tem a obrigação de escolher entre o “sim” e o “não” e justificar sua escolha ao mundo todo, sem admitir a mais mínima interferência de suas preferencias e simpatias pessoais, sem poder reconhecer que faz o que quer, pois ele só pode fazer o que deve, no limite estreito da lei. E sabendo que será sempre atacado por todos aqueles que não foram atendidos por sua escolha e por todos aqueles que legitimamente ou não buscam lhe tomar o poder, a posição.
Não deve ter sido fácil para o presidente, é preciso reconhecer, por mais que o poder seja estimulante, por mais que ele tivesse e tenha vocação para a vida pública e por mais que ele mesmo tenha lutado para chegar lá. Menos fácil ainda é ser atacado por boatos, notícias, acusações, delações, convicções e adversários até entre os parceiros de ontem.
Não é fácil ser acusado de tanta coisa: de ser dono de uma ilha, de ter se aposentado antes dos 40 anos, de ter lavado dinheiro, de ser um coronel no melhor estilo nordestino, de ter recebido propinas, de ser dono de carros importados de alto luxo, de ter multiplicado o patrimônio pessoal, de ter um apartamento na cidade européia mais chique , de ter beneficiado um filho com um contrato numa empreiteira que tinha contrato com uma estatal, de ter uma amante e um filho sustentados por uma empresa global, de cobrar palestras sem tê-las proferido, de receber favor e patrocínio de uma empreiteira, de ser dono de um sítio, uma fazenda no sertão mineiro, de um tríplex na orla, de financiar indevidamente a sua fundação cultural captando recursos em pleno exercício do cargo, de conspirar e trair, de tramar o fim de investigações…acusações sem fim, sem prova, parecem ser uma triste sina e destino inevitável de quem alcança e exerce o poder, uma espécie de tributo à glória, qual um acerto de contas.
É compreensível, mas não é justo. O presidente não merece isso, a injustiça. A lei, o direito e a justiça, assim como seus agentes no Estado, existem para evitar a injustiça.
Bem, mas quem entra na vida pública já sabe: na hora da chuva, vai se molhar. Vira vidraça, deixa de ser estilingue. Que suporte, então, os ônus, como usufruiu dos bônus, no infinito limite da política ou no estrito limite da lei.
A opinião pública e o cidadão, assim como a imprensa, têm o direito de duvidar e criticar.
O Estado e sua poderosíssima e gigantesca máquina têm também o direito de duvidar, e, neste caso, a obrigação de investigar. E, segundo a lei, em havendo certos requisitos, denunciar. E, segundo a lei, no caso de provar, condenar. Claro, evidente, após julgamento devido e adequado. A lei diz que só deve ser preso quem é apanhado em flagrante delito e por sentença condenatória transitada em julgado. Assim, assegura-se que não haverá prisões abusivas, excesso no uso da autoridade (abuso de servidor público) e torturas físicas e psicológicas. Assim, garante-se o cumprimento da lei e o respeito aos princípios do bom direito, como a presunção da inocência e um justo julgamento, com amplo direito de defesa.
Como um presidente, o Estado também não pode ter gostos, preferências e, com base nelas, fazer estranhas alianças e realizar perseguições. O Estado é uma espécie de grande monstro (o Leviatã), precisa de freios, quem conhece a história sabe.
Por tudo isso, e muito mais, cabe avisar (ou humildemente pedir) aos navegantes do mar do bom senso que evitem as águas turvas: respeitem a lei, respeitem o ex-presidente.